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Transcrição de partes do livro de Philippe Perrenoud:
“CONSTRUIR AS COMPETÊNCIAS DESDE A ESCOLA”
Abordagem por Competências
Conhecimento e Competências
Afinal, vai-se à escola para adquirir conhecimentos, ou para desenvolver competências?
Essa pergunta oculta um mal-entendido e designa um verdadeiro dilema.
O mal-entendido está em acreditar que, ao desenvolverem-se competências, desiste-se de transmitir conhecimentos. Quase que a totalidade das ações humanas exige algum tipo de conhecimento, às vezes superficial, outras vezes aprofundado, oriundo da experiência pessoal, do senso comum, da cultura partilhada em um círculo de especialistas ou da pesquisa tecnológica ou científica.
O verdadeiro dilema: para construir competências, esta precisa de tempo, que é parte do tempo necessário para distribuir o conhecimento profundo.
Noção de competência: capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles.
Quase toda ação mobiliza alguns conhecimentos, algumas vezes elementares e esparsos, outras vezes complexos e organizados em redes. Assim é, por exemplo, que conhecimentos bastante profundos são necessários para: analisar um texto e reconstituir as intenções do autor; traduzir de uma língua para outra; argumentar com a finalidade de convencer alguém cético ou um oponente; construir uma hipótese e verificá-la; identificar, enunciar e resolver um problema científico; detetar uma falha no raciocínio de um interlocutor; negociar e conduzir um projeto coletivo.
As competências manifestadas por essas ações não são, em si, conhecimentos; elas utilizam hipóteses, ou mobilizam tais conhecimentos.
Uma competência nunca é a implementação "racional" pura e simples de conhecimentos, de modelos de ação, de procedimentos. Formar em competências não pode levar a dar as costas à assimilação de conhecimentos, pois a apropriação de numerosos conhecimentos não permite, ipso facto, sua mobilização em situações de ação.
O reconhecimento da própria pertinência da noção de competência continua sendo um desafio nas ciências cognitivas, assim como na didática.
Alguns pesquisadores preferem ampliar a noção de conhecimento sem apelar para outros conceitos. Assim é que as ciências cognitivas têm conseguido, progressivamente, distinguir três tipos de conhecimentos:
- Os conhecimentos declarativos, os quais descrevem a realidade sob a forma de fatos, leis, constantes ou regularidades;
- Os conhecimentos procedimentais, os quais descrevem o procedimento a aplicar para obter-se algum tipo de resultado (por exemplo, os conhecimentos metodológicos);
- Os conhecimentos condicionais, os quais determinam as condições de validade dos conhecimentos procedimentais.
Melhor seria, no meu entender, aceitar o fato de que, cedo ou tarde, chega o momento em que o especialista, provido com os conhecimentos declarativos, procedimentais e condicionais mais confiáveis e mais aprofundados, deve julgar sua pertinência em relação à situação e mobilizá-los com discernimento. Ora, esse juízo ultrapassa a aplicação de uma regra ou de um conhecimento.
A construção de competências é inseparável da formação de esquemas de mobilização dos conhecimentos com discernimento, em tempo real, ao serviço de uma ação eficaz. Ora, os esquemas de mobilização de diversos recursos cognitivos em uma situação de ação complexa desenvolvem-se e estabilizam-se ao sabor da prática.
No ser humano, com efeito, os esquemas de mobilização não podem ser programados por uma intervenção externa. Não existe, a não ser nas novelas de ficção científica, nenhum "transplante de esquemas". O sujeito não pode tampouco construí-los por simples interiorização de um conhecimento procedimental. Os esquemas constroem-se ao sabor de um treinamento, de experiências renovadas, ao mesmo tempo redundantes e estruturantes, treinamento esse tanto mais eficaz quando associado a uma postura reflexiva.
CABEÇAS BEM-CHEIAS OU CABEÇAS BEM-FEITAS?
Tal treinamento só é possível se o sujeito tiver o tempo de viver as experiências e analisá-las.
Por essa razão é impossível, em um número limitado de anos de escolaridade, cobrir programas pletóricos de conhecimentos, senão abrindo mão, em grande medida, da construção de competências. Afinal de contas, conhecimentos e competências são estreitamente complementares, mas pode haver entre eles um conflito de prioridade, em particular na divisão do tempo de trabalho na aula:
Desenvolver uma competência é assunto da escola? Ou a escola deve limitar-se à transmissão do conhecimento?
O debate sobre as competências reanima o eterno debate sobre cabeças bem-feitas ou cabeças bem-cheias.
Desde que essa discussão existe, a escola procura seu caminho entre duas visões do currículo:
(1) uma consiste em percorrer o campo mais amplo possível de conhecimentos, sem preocupar-se com sua mobilização em determinada situação, o que equivale, mais ou menos abertamente, a confiar na formação profissionalizante ou na vida para garantir a construção de competências;
(2) a outra aceita limitar, de maneira drástica, a quantidade de conhecimentos ensinados e exigidos para exercitar de maneira intensiva, no âmbito escolar, sua mobilização em situação complexa.
A primeira visão parece dominar de modo constante a história da escola obrigatória, em particular no ensino médio, mas o equilíbrio das tendências está flutuando ao longo das décadas.
Para entender o mundo e agir sobre ele, não se deve, ao mesmo tempo, apropriar-se de conhecimentos profundos e construir competências suscetíveis de mobilizá-los corretamente?
A figura do especialista o atesta: ele se define, simultaneamente, como um cientista, um erudito, alguém que "leu todos os livros" e acumulou tesouros de conhecimentos por meio da experiência; alguém que tem intuição, senso clínico, savoir-jaire e o conjunto das capacidades que permitem antecipar, correr riscos, decidir, em suma, agir em situação de incerteza.
À pergunta: "Conhecimentos profundos ou perícia na implementação?", gostaríamos de responder: ambos!
O dilema educativo é, sobretudo, uma questão de prioridade.
Sendo impossível fazer tudo, no tempo e no espaço de uma formação profissionalizante inicial ou de uma escolaridade básica, o que fazer de mais útil? Quem, a longo prazo, poderia defender conhecimentos absolutamente inúteis para a ação, em seu sentido mais amplo? Inversamente, quem, hoje em dia, poderia continuar defendendo um utilitarismo estreito, limitado a alguns savoir-faire elementares?
Agir em uma sociedade mutante e complexa é, antes, entender, antecipar, avaliar, enfrentar a realidade com ferramentas intelectuais. Kurt Lewin, um dos fundadores da psicologia social, dizia "Nada é tão prático como uma boa teoria".
A discussão sobre as prioridade remete para conceções opostas da cultura, com mais ênfase no modo pelo qual nos apropriamos dele! O debate está organizando-se, há alguns anos, em torno da noção de competência e da sua pertinência no ensino geral.
A abordagem pelas competências tem-se desenvolvido nos países anglo-saxões e está ganhando espaço no mundo francófono. Na Bélgica, o ensino fundamental e a primeira série do ensino médio referem-se doravante a blocos de competências (Ministério da Educação, 1994). Em Quebec, a abordagem pelas competências norteou uma reforma completados programas dos Colégios de Ensino Geral e Profissionalizante (CEGEP), que estão situados, na organização norte-americana, entre o liceu e a universidade, a exemplo dos colégios americanos.
Na verdade, a questão das competências e da relação conhecimentos-competências está no centro de um certo número de reformas curriculares em muitos países, mais especialmente no ensino médio. No ensino fundamental, a formação das competências é, em certo sentido, mais evidente e envolve os chamados "savoir-faire elementares: ler, escrever, etc. A partir dos oito anos, as disciplinas multiplicam-se, e a problemática conhecimentos-competências instala-se.
A IRRESISTÍVEL ASCENSÃO
As competências estão no fundamento da flexibilidade dos sistemas e das relações sociais.
Na maioria das sociedades animais, a programação das condutas proíbe qualquer invenção, e a menor perturbação externa pode desorganizar uma colmeia, pois ela é organizada como uma máquina de precisão.
As sociedades humanas, ao contrário, são conjuntos vagos e ordens negociadas. Não funcionam como relógios e admitem uma parte importante de desordem e incerteza, o que não é fatal, pois os atores têm, ao mesmo tempo, o desejo e a capacidade de criar algo novo, conforme complexas transações. Portanto, não é anormal que os sistemas educacionais preocupem-se com o desenvolvimento das competências correspondentes.
Ainda assim, essa preocupação não domina constantemente as políticas educacionais e a reflexão sobre os programas. Por que será que vemos atualmente o que Romainville (1996) chama de uma "irresistível ascensão" da noção de competência em educação escolar?
A explicação mais evidente consiste em invocar uma espécie de contágio: como o mundo do trabalho apropriou-se da noção de competência, a escola estaria seguindo seus passos, sob o pretexto de modernizar-se e de inserir-se na corrente dos valores da economia de mercado, como gestão dos recursos humanos, busca da qualidade total, valorização da excelência, exigência de uma maior mobilidade dos trabalhadores e da organização do trabalho.
No campo profissional, ninguém contesta que os empíricos devam ser capazes de "fazer coisas difíceis" e que passem por uma formação. A noção de qualificação tem permitido por muito tempo pensar as exigências dos postos de trabalho e as disposições requeridas daqueles que os ocupam.
As transformações do trabalho - rumo a uma flexibilidade maior dos procedimentos, dos postos e das estruturas - e a análise ergonômica mais fina dos gestos e das estratégias dos profissionais levaram a enfatizar, para qualificações formais iguais, as competências diferenciadas, evolutivas, ligadas à história de vida das pessoas.
Já não é suficiente definir qualificações-padrão e, sobre essa base, alocar os indivíduos nos postos de trabalho. O que se quer é gerenciar competências (Lévy-Leboyer, 1996), estabelecer tanto balanços individuais como "árvores" de conhecimentos ou competências que representem o potencial coletivo de uma empresa (Authier e Lévy, 1996).
Entende-se, então, por que se fala, nas formações profissionalizantes e de maneira cada vez mais banal, em "referenciais de competências", uma linguagem bastante familiar entre as empresas e os profissionais do ramo.
As transformações observáveis no mercado de trabalho e nas formações profissionalizantes exercem, provavelmente, certos efeitos sobre a escolaridade fundamental e sobre a conceção da cultura geral ali prevalecente. No entanto, isso não basta para explicar o uso crescente da noção de competências no âmbito da escola obrigatória.
O sistema educacional tem sido construído sempre "a partir de cima": as universidades e as grandes escolas é que definem o horizonte dos liceus, enquanto estes determinam as finalidades dos colégios, os quais, por sua vez, fixam as exigências para a escola primária.
Ora, embora as universidades não desprezem as competências, em particular nos campos onde elas assumem abertamente uma missão de formação profissionalizante, elas não lhes conferem um estatuto dos mais prestigiosos. Ao contrário, pode-se dizer que, mesmo quando formam competências, elas têm o pudor de não designá-las e preferem enfatizar o saber erudito, teórico e metodológico. Raramente se vêem documentados os objetivos de uma formação universitária e, menos ainda, formulados na linguagem das competências.
Ou seja, não são em absoluto as universidades que incentivam o ensino médio a reformular seus programas em termos de competências.
Se a universidade não induz a uma abordagem pelas competências no ensino médio, será que podemos dizer que, nessa matéria, a escola obrigatória sofre antes a influência das formações profissionalizantes que a seguem?
Talvez a atenção dada às competências possa levar os meios econômicos a encorajarem a escola obrigatória a dirigir sua ação na mesma direção. Sua influência, porém, não é recente, nem absoluta. No entanto, ela não basta para explicar a moda da noção da competência no campo pedagógico.
E então, o que está ocorrendo?
Absolutamente nada de novo: em uma linguagem mais moderna, a atual problemática das competências está reanimando um debate tão antigo como a escola, que opõe os defensores de uma cultura gratuita e os partidários do utilitarismo, seja este de esquerda ou de direita.
Entre os adultos que aderem à ideia de que a escola serve para aprender coisas diretamente úteis à vida, encontram-se, sem surpresa, os fortemente engajados na indústria e nos negócios, enquanto os que trabalham e encontram suas identidades em atividade para o ser humano (na função pública, na arte ou na pesquisa) defendem uma visão mais ampla da escolaridade.
Os movimentos de escola nova e pedagogia ativa (por exemplo, o Grupo Francês de Educação Nova, 1996) juntam-se ao mundo do trabalho na defesa de uma escolaridade que permita a apreensão da realidade. Apesar das diferenças ideológicas, eles estão unidos por uma tese: para que serve ir à escola, se não se adquire nela os meios para agir no e sobre o mundo.
Enquanto há aqueles que falam na necessidade de adaptação à concorrência econômica e à modernização do aparelho de produção, outros falam em autonomia e democracia.
Ainda assim, o sistema de ensino está preso, desde o surgimento da forma escolar, a uma tensão entre os que querem transmitir a cultura e os conhecimentos por si e os que querem, nem que seja em visões contraditórias, ligá-los muito rapidamente a práticas sociais.
Conservadores e inovadores, defensores das elites ou da democracia: nenhum desses "campos" é totalmente homogéneo.
UMA POSSÍVEL RESPOSTA À CRISE DA ESCOLA?
Dentro do sistema educacional, está-se tomando consciência do fato de que a explosão dos orçamentos e a inflação dos programas não foram acompanhados por uma elevação proporcional dos níveis reais de formação. A procura pela escola está crescendo, mas a formação não evolui no mesmo ritmo. O nível está subindo (Baudelot e Establet, 1989), mas será que está subindo com a velocidade necessária?
As esperanças suscitadas pela democratização do ensino foram dececionantes: um número cada vez maior de jovens adquire maior escolaridade, mas eles serão mais tolerantes, mais responsáveis, mais capazes do que seus predecessores para agir e para viver em sociedade?
Apesar das políticas ambiciosas, que dizer dos que ainda saem da escola sem nenhuma qualificação, quando não analfabetos (Baudelot, 1996), dos que o fracasso escolar convenceu de sua indignidade cultural e prometeu à miséria do mundo, ao desemprego ou aos subempregos, em uma sociedade dual?
Em cada sociedade desenvolvida, a opinião púbica e a classe política não estão mais dispostas a somente apoiar o crescimento sem fim dos orçamentos da educação, mas também exigem a prestação de contas, querem uma escola mais eficaz, que prepare melhor para a vida sem, por isso, custar mais caro. A corrida aos diplomas perde sua pertinência junto com a desvalorização dos títulos e a rarefação dos empregos, mas abandoná-la levaria a correr riscos ainda maiores.
Os adultos exercem uma pressão constante sobre os jovens, os quais acreditam cada vez menos que o sucesso escolar irá protegê-los das dificuldades da existência. Assim, pede-se à escola que instrua uma juventude cuja adesão ao projeto de escolarização não está mais garantida.
Na escola, ao menos nas carreiras nobres, tratou-se sempre de desenvolver as "faculdades gerais" ou o "pensamento", além da assimilação dos conhecimentos. O acento dado às competências não chega tão longe.
A abordagem por competências não rejeita nem os conteúdos, nem as disciplinas, mas sim acentua sua implementação. Aceitar uma abordagem por competências é, portanto, uma questão ao mesmo tempo de continuidade e de mudança, de rutura até, pois as rotinas pedagógicas e didáticas, as compartimentações disciplinares, a segmentação do currículo, o peso da avaliação c da seleção, as imposições da organização escolar, a necessidade de tornar rotineiros o ofício de professor e o ofício de aluno têm levado a pedagogias e didáticas que, às vezes, não contribuem muito para construir competências, mas apenas para obter aprovação em exames...
Desse modo, a inovação consistiria, não em fazer emergir a ideia de competência na escola, mas sim em aceitar "todo programa orientado pelo desenvolvimento de competências, as quais têm um poder de gerenciamento sobre os conhecimentos disciplinares" (Tardif, 1996, p. 45).
Essa orientação vai revelar-se fundada ou não passará de mais uma miragem? É difícil dizê-lo.
A historia da escola está marcada por momentos de "'pensamento mágico” em que cada um quer acreditar que, mudando-se as palavras, a vida também muda.
Por ora, a abordagem por competências agita, antes de tudo, o mundo dos que concebem ou debatem programas.
Só preocupará os professores, se os textos oficiais impuserem uma abordagem por competências de maneira precisa o bastante para tornar-se incontornável e obrigarem para a sua prática de ensino e avaliação na sala de aula.
Essa abordagem corre o risco de uma vigorosa rejeição por parte dos docentes, que não verão seus fundamentos e seu interesse ou, quando apreenderem suas intenções e consequências, não aderirão a ela, por boas ou más razões.
Como de costume, os que defendem uma nova orientação dos programas não têm como demonstrar o valor incontestável da mudança que estão propondo. Quando a pesquisa em ciências humanas estiver mais avançada, as coisas ficarão mas claras. Atualmente, não se pode afirmar que estamos trabalhando em bases firmes. Não é confortável, mas pior ainda seria negá-lo e agir como se soubéssemos como se formam as mentes e as competências fundamentais.
A reforma do ensino e o atual debate sobre a escola levam a questões teóricas de fundo, notadamente sobre a natureza e a gênese da capacidade do ser humano de enfrentar situações inéditas, para dar-lhes um significado e para agir com discernimento.
Nada mais normal, então, que se enfrentem conceções diversas e divergentes do aprendizado e da cultura, sendo que nenhuma delas dispõe dos meios para impor-se de maneira puramente racional, no estágio atual da pesquisa.
Paralelamente a esse debate de fundo, convém medir as implicações de uma abordagem por competências para a totalidade do funcionamento pedagógico e didático.
Esse debate leva-nos ao centro das contradições da escola, que oscila entre dois paradigmas - ensinar conhecimentos ou desenvolver competências -, entre uma abordagem "clássica", que privilegia aulas e temas, manuais e provas, e uma abordagem mais inspirada nas novas pedagogias e nas formações de adultos.
O QUE ESTÁ EM JOGO NA FORMAÇÃO
Concebidas dessa maneira, as competências são importantes metas da formação.
Elas podem responder a uma demanda social dirigida para a adaptação ao mercado e às mudanças e também podem fornecer os meios para apreender a realidade e não ficar indefeso nas relações sociais.
Procuremos aqui nos equilibrar entre um otimismo beato e um negativismo de princípio. Para dizê-lo em duas teses:
A abordagem pelas competências não se opõe à cultura geral, a não ser que esta última receba uma orientação enciclopédica.
Ao reduzir-se a cultura geral a uma acumulação de conhecimentos, por mais ricos e organizados que sejam, delega-se sua transferência e a construção de competências às formações profissionalizantes, com a exceção de certas competências disciplinares consideradas fundamentais.
Essa não é a única conceção possível. A própria essência de uma cultura geral não será preparar os jovens para entender e transformar o mundo em que vivem?
COMPETÊNCIAS E PRÁTICAS SOCIAIS
Toda competência está, fundamentalmente, ligada a uma prática social de certa complexidade. Não a um gesto dado, mas sim a um conjunto de gestos, posturas e palavras inscritos na prática que lhes confere sentido e continuidade.
Nas formações profissionalizantes, pretende-se preparar para um ofício que confrontará a prática com situações de trabalho que, a despeito da singularidade de cada um, poderão ser dominadas graças a competências de uma certa generalidade.
Nas formações escolares gerais, na medida em que elas não levam a nenhuma profissão em particular, qual será, então, o princípio de identificação das situações a partir das quais poderiam ser detetadas competências? Diante desse problema, pode-se distinguir duas estratégias:
- a primeira consiste em enfatizar competências transversais, uma vez que sua própria existência está sendo contestada (Rey, 1996), e
- a segunda é a de "fazer como se" as disciplinas já formassem para competências, cujo exercício na aula prefiguraria a implementação na vida profissional ou na extraprofissional.
À PROCURA DE COMPETÊNCIAS TRANSVERSAIS
Para escrever programas escolares que visem explicitamente ao desenvolvimento de competências, pode-se tirar, de diversas práticas sociais, situações problemáticas das quais serão "extraídas" competências ditas transversais. Em geral, as características gerais da ação humana, quer dependam do "agir comunicacional", quer da ação técnica: ler, escrever, observar, comparar, calcular, antecipar, planejar, julgar, avaliar, decidir, comunicar, informar, explicar, argumentar, convencer, negociar, adaptar, imaginar, analisar, entender, etc.
Assim, é perfeitamente possível e legítimo dar sentido a verbos como argumentar, prever ou analisar.
Argumentar: "Discutir, recorrendo a argumentos, provar ou contestar algo por meio de argumentos".
Argumento: "Raciocínio destinado a provar ou refutar uma proposição e, por extensão, prova para apoiar ou rejeitar uma proposição".
Prever: "Conhecer e anunciar (algo futuro) como havendo de ser, havendo de produzir". Previsão: Ato de prever, conhecimento do futuro.
Analisar: "Fazer a análise de...".
Análise: "Operação intelectual que consiste em decompor um texto em seus elementos essenciais, para apreender suas relações e dar ura esquema do conjunto" ou "ato de decompor uma mistura para separar seus constituintes".
PRÁTICAS DE REFERÊNCIA E DE TRANSPOSIÇÃO
Essa problemática é embaraçosa para quem deseja elaborar um referencial de competências transversais.
Por definição, tal referencial é padrão, pois convida os que o utilizam a aceitarem os conjuntos de situações escolhidos pelos autores do referencial, ou seja, sua visão do mundo.
Essa maneira de agir é parcialmente defensável no campo das profissões, devido à referência comum a uma cultura profissional que propõe uma tipologia das situações de trabalho.
Nada existe de equivalente para as situações da vida. As ações e as operações repertoriadas no dicionário — imaginar, raciocinar, analisar, antecipar, etc. — não correspondem a situações identificáveis, tão abstrato é seu nível de formulação e a ausência de referência a um certo contexto, a um desafio, a uma prática social. Tal problema surge em cada disciplina.
Se as competências serão formadas pela prática, isso deve ocorrer, necessariamente, em situações concretas, com conteúdos, contextos e riscos identificados.
Quando o programa não propõe nenhum contexto, entrega aos professores a responsabilidade, isto é, o poder e o risco de determiná-lo.
COMPETÊNCIAS E DISCIPLINAS
Alguns temem que desenvolver competências na escola levaria a renunciar às disciplinas de ensino e apostar tudo em competências transversais e em uma formação pluri, inter ou transdisciplinar.
Esse temor é infundado: a questão é saber qual conceção das disciplinas escolares adotar.
Em toda a hipótese, as competências mobilizam conhecimentos dos quais, grande parte é e continuará sendo de ordem disciplinar, até que a organização dos conhecimentos eruditos distinga as disciplinas, de modo que cada uma assuma um nível ou um componente da realidade.
ENTRE O "TUDO DISCIPLINAR" E O "TUDO TRANSVERSAL"
Se cada competência for referida a um conjunto de situações, a questão crucial é de ordem empírica: será que as situações mais prováveis recorrem prioritariamente aos recursos de uma disciplina? De várias disciplinas? De todas elas? De nenhuma?
Várias hipóteses podem e devem ser consideradas.
(1) Há situações cujo domínio encontra seus recursos, essencialmente, em uma única disciplina:
(2) Há situações cujo domínio encontra seus recursos em várias disciplinas identificáveis. E o caso de muitas situações de vida fora da escola, no trabalho e fora do trabalho.
(3) Existem situações cujo domínio não passa por nenhum conhecimento disciplinar - exceto a língua materna.
Pouco se sabe sobre a mobilização de conhecimentos disciplinares nas situações da vida. Seria salutar multiplicar as investigações sobre os conhecimentos que as pessoas utilizam efetivamente em sua vida, suas fontes, seus modos de apropriação. Talvez um estudo aprofundado mostrasse que os conhecimentos disciplinares são menos importantes do que os especialistas acreditam, porém estão presentes, ao menos marginalmente, em um grande número de situações, mesmo quando não são aprendidos na escola.
No entanto, pode-se avançar na hipótese de que o que tiver aprendido em outro lugar, paralelamente ou mais tarde, organizou-se, em parte, a partir das noções básicas e da matriz disciplinar implementada pelo ensino fundamental.
A honestidade está em dizer, hoje, que não sabemos exatamente qual é a utilidade das disciplinas escolares - além de ler, escrever e contar - na vida diária das pessoas que não seguiram estudos superiores. A razão é muito simples: historicamente, a escolaridade tem sido construída para preparar os estudos universitários. E muito recente a preocupação com sua relação com as situações da vida profissional e não-profissional.
O fato de nem a escola primária, nem sequer a escola de ensino médio deixarem de construir um nível final de estudos obriga a interrogar-se sobre a finalidade desses ciclos de aprendizado, sem ignorar que doravante eles preparam para uma grande diversidade de destinos escolares e sociais.
A TRANSFERÊNCIA E A INTEGRAÇÃO DOS CONHECIMENTOS
Ainda hoje, e mais notadamente no ensino médio, pode-se pretender dispensar conhecimentos disciplinares sem preocupar-se com sua integração em competências ou com seu investimento em práticas sociais.
Esse "desligamento" pode fundar-se: (1) ora na impressão de que essa integração irá fazer-se por si, quando o sujeito estiver enfrentando situações complexas; (2) ora na recusa de assumir essa integração, cuja execução é entregue a outros formadores, a um acompanhamento por práticos mais experientes ou "à vida".
Essas duas razões pedem refutações distintas. A primeira é simplesmente desmentida pelos fatos: muitos alunos não têm nem os recursos pessoais, nem as ajudas externas necessárias para utilizar plenamente seus conhecimentos, quando essa mobilização não foi o objeto de nenhum treinamento.
Sabe-se agora que a transferência de conhecimentos ou sua integração em competências não são automáticas e passam por um trabalho, isto é, um acompanhamento pedagógico e didático sem o qual nada ocorrerá, a não ser para os alunos com grandes meios para isso (Mendelsohn, 1996; Perrenoud, 1997a). O que leva Tardif e Meirieu (1996) a defenderem que o não-escoramento ou, mais globalmente, o exercício da transferência fazem parte do trabalho regular da escola, notadamente para todos os alunos que não contam em sua família com os recursos ou apoios que a escola não pode, ou não quer proporcionar.
Seria igualmente leviano imaginar que o que não foi feito em tal nível de tal disciplina será feito no nível seguinte.
AS CONSEQUÊNCIAS PARA OS PROGRAMAS
Existe a tentação, na formação geral, de trabalhar separadamente capacidades descontextualizadas, definidas em um elevado nível de abstração: saber comunicar, raciocinar, argumentar, negociar, organizar, aprender, procurar informações, conduzir uma observação, construir uma estratégia, tomar ou justificar uma decisão.
Os especialistas dos programas e da avaliação padronizada podem apresentar essas capacidades gerais como competências, jogando com as ambiguidades do conceito ou, em uma posição defensiva, considerá-las como elementos ou ingredientes gerais de múltiplas competências.
Na falta de formar somente competências, a escola poderia, ao menos, além de fornecer conhecimentos, trabalhar capacidades descontextualizadas - sem referencia a situações específicas – porém "contextualizáveis", tais como saber explicar, saber interrogar-se ou saber raciocinar.
A linguagem das competências está invadindo os programas, porém não passa, muitas vezes, de uma roupagem nova com a qual se tapa ora as mais antigas faculdades da mente, ora os conhecimentos eruditos ensinados desde sempre.
Em suma, não basta acrescentar a qualquer conhecimento uma referência qualquer a uma ação (traduzir em forma gráfica, observar, verificar se...) para designar uma competência!
A IDÉIA DE "BLOCO DE COMPETÊNCIAS"
Um bloco de competências é um documento que enumera, de maneira organizada, as competências visadas por uma formação. Um bloco de competências não é um programa clássico, não diz o que deve ser ensinado, mas sim, na linguagem das competências, o que os alunos devem dominar.
A meta é antes fazer aprender do que ensinar.
Para o ensino obrigatório, tende a garantir para cada indivíduo um "capital mínimo" cujo nível, se estivesse aquém do esperado, tornaria a inserção social problemática.
A abordagem por competências junta-se às exigências da focalização sobre o aluno, e dos métodos ativos, pois convida, firmemente, os professores a:
- considerar os conhecimentos como recursos a serem mobilizados;
- trabalhar regularmente por problemas;
- criar ou utilizar outros meios de ensino;
- negociar e conduzir projetos com seus alunos;
- adotar um planeamento flexível e indicativo e improvisar;
- implementar e explicitar um novo contrato didático;
- praticar uma avaliação formadora em situação de trabalho;
- dirigir-se para uma menor compartimentação disciplinar.
CONVENCER OS ALUNOS A MUDAR DE OFÍCIO
- Transparência
O trabalho escolar tradicional estimula a mera apresentação de resultados, enquanto a abordagem por competências torna visíveis os processos, os ritmos e os modos de pensar e agir.
- Cooperação
Uma abordagem por competências não permite ao aluno que "se retire para sua barraca", mesmo para trabalhar. Um projeto de grande envergadura ou um problema complexo, normalmente, mobilizam um grupo, solicitam várias habilidades, no âmbito da divisão do trabalho, e também necessitam de uma coordenação das tarefas de uns e de outros.
- Tenacidade
Os exercícios escolares tradicionais são episódios sem amanhã. Completados ou não, certos ou errados, são abandonados com uma certa rapidez para deixar o lugar a outros.
Em um processo de projeto, o prazo do investimento é maior; pede-se aos alunos que não percam de vista o objetivo e que adiem a sua satisfação até a conclusão total, às vezes, para vários dias ou para várias semanas depois.
- Responsabilidade
As pedagogias de projeto vão nesse sentido, ou seja, o aluno assume novas responsabilidades para com terceiros.
A abordagem por competências o insere em um tecido de solidariedades que limitam sua liberdade.
O desafio de uma reforma do sistema educacional só será maior se ela beneficiar, prioritariamente, os alunos que fracassam na escola.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.