Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Transcrição de trabalho elaborado por: Estácio
A AVALIAÇÃO:
NO PRINCÍPIO DA EXCELÊNCIA E DO ÊXITO ESCOLARES
O que é um aluno fracassado? Para o sociólogo:
"O aluno que fracassa é aquele que não adquiriu no prazo previsto os novos conhecimentos e as novas competências que a instituição, conforme o programa, previa que adquirisse" (Isambert-Jamati, 1971).
Essa definição resgata o senso comum.
Entretanto, ela levanta uma questão tão banal que poderia ser ignorada: como se sabe se um aluno “adquiriu, ou não, no prazo previsto, os novos conhecimentos e as novas competências que a instituição, conforme o programa, previa que adquirisse”?
Indiretamente, essa simples definição remete a um mundo de agentes e de práticas de avaliação: o grau de aquisição de conhecimentos e de competências deve ser avaliado por alguém, e esse julgamento deve ser sustentado por uma instituição para tornar-se mais do que uma simples apreciação subjetiva e para fundar decisões de seleção de orientação ou de certificação.
Os alunos são considerados como tendo alcançado êxito ou fracasso na escola porque são avaliados em função de exigências manifestadas pelos professores ou outros avaliadores, que seguem os programas e outras diretrizes determinadas pelo sistema educativo.
As normas de excelência e as práticas de avaliação, sem engendrar elas mesmas as desigualdades no domínio dos saberes e das competências, desempenham um papel crucial em sua transformação em classificações e depois em julgamentos de êxito ou de fracasso.
Sem normas de excelência, não há avaliação; sem avaliação, não há hierarquias de excelência; sem hierarquias de excelência, não há êxitos ou fracassos declarados e, sem eles, não há seleção, nem desigualdades de acesso às habilitações almejadas do secundário ou aos diplomas.
Normalmente, define-se o fracasso escolar como a simples consequência de dificuldades de aprendizagem e como a expressão de uma falta "objetiva" de conhecimentos e de competência.
Essa visão, que "naturaliza" o fracasso, impede a compreensão do que ele resulta de formas e de normas de excelência instituídas pela escola, cuja execução local revela algumas arbitrariedades, entre as quais a definição do nível de exigência, do qual depende o limiar que separa aqueles que têm êxito daqueles que não os têm.
Nas sociedades humanas, quase todas as desigualdades culturais que correspondem a uma forma ou outra de domínio do real proporcionam classificações, que os sociólogos chamam de "hierarquias de excelência", para distingui-las de outros tipos de hierarquias.
A excelência define-se como a qualidade de uma prática, na medida em que se aproxima de uma norma ideal. Ela remete a competências subjacentes, isto é, a uma “hierarquia de competência”.
O fracasso escolar não é a simples tradução “lógica" de desigualdades tão reais quanto naturais. Não se pode pura e simplesmente compará-lo a uma falta de cultura, de conhecimentos ou de competências. Essa falta é sempre relativa a uma classificação, ela própria ligada a formas e a normas de excelência escolar, a programas, a níveis de exigência, a procedimentos de avaliação.
Sendo assim, a análise dos procedimentos de avaliação convida a não esquecer jamais:
(1) por um lado, que o fracasso escolar é sempre relativo a uma cultura escolar definida, ou seja, a formas e normas particulares de excelência, a programas e a exigências;
(2) por outro, que a medida da excelência, por intermédio dos procedimentos de avaliação nunca é um simples reflexo das desigualdades de conhecimentos e de competências, que ela as dramatiza, amplia-as, desvia-as às vezes e, sobretudo, põe as hierarquias de excelência a serviço de decisões que as sobre-determinam.
As diferenças e as desigualdades extra-escolares - biológicas, psicológicas, econômicas, sociais e culturais - não se transformam em desigualdades de aprendizagem e de êxito escolar, a não ser ao sabor de um funcionamento particular do sistema de ensino, de sua maneira de “tratar" as diferenças.
Hoje, a maioria dos sistemas escolares ainda mantém amplamente a ficção segundo a qual todas as crianças de seis anos que entram na primeira série da escola obrigatória estariam igualmente desejosas e seriam capazes de aprender a ler e a escrever em um ano. Todo mundo sabe que isso é falso, o que não impede que tal ficção permaneça no princípio da estrutura escolar, do tratamento das faixas etárias e da distribuição do programa em graus anuais.
No início da escolaridade obrigatória, as diferenças de idades são as únicas que a escola aceita levar em conta.
Para afrontar a formidável diversidade dos ritmos de desenvolvimento, desejou-se ignorar ou deixar por conta das dispensas por idade o fato de que, aos seis anos, certos alunos possam manifestar um nível de desenvolvimento que outros só atingirão aos sete ou oito, ao passo que outros já o haviam atingido aos quatro ou cinco.
Um atraso de desenvolvimento só é considerado quando tiver originado dificuldades graves, até mesmo um fracasso.
A repetição da primeira série de escolaridade obrigatória, que pretende aumentar a homogeneidade dos alunos que passam para o ano seguinte, está muito fortemente ligada à classe social, que é, assim, indiretamente considerada, por uma medida de diferenciação grosseira e cujos efeitos são duvidosos.
Quanto às diferenças que não dizem respeito a um avanço ou a um atraso do desenvolvimento, elas tem alguns remédios conhecidos, utilizados apenas quando as dificuldades são confirmadas: reprovação, apoio pedagógico, atendimento médico-pedagógico ou psiquiátrico.
A escola não pensa realmente sobre as diferenças; ela trata seus efeitos com meios rudimentares.
OS PROCEDIMENTOS HABITUAIS DE AVALIAÇÃO,
OBSTÁCULOS À MUDANÇA DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS
A característica constante de todas as práticas de avaliação é submeter regularmente o conjunto dos alunos a provas que evidenciam uma distribuição dos desempenhos, portanto de bons e maus desempenhos, senão de bons e maus alunos. Ela é:
(1) normativa;
(2) comparativa: os desempenhos de alguns se definem em relação aos desempenhos dos outros mais do que a domínios almejados ou a objetivos;
(3) pouco individualizada: a mesma para todos no mesmo momento, segundo o princípio do exame, mas onde cada um é avaliado separadamente por um desempenho que supostamente reflete suas competências pessoais.
Em quê e por quê os procedimentos de avaliação ainda em vigor na maioria das escolas do mundo levantam um obstáculo à inovação pedagógica?
Distinguirei sete mecanismos complementares:
(1) A avaliação frequentemente absorve a melhor parte da energia dos alunos e dos professores e não sobra muito para inovar.
(2) O sistema clássico de avaliação favorece uma relação utilitarista com o saber. Os alunos trabalham “pela nota”: todas as tentativas de implantação de novas pedagogias se chocam com esse minimalismo.
(3) O sistema tradicional de avaliação participa de uma espécie de chantagem, de uma relação de força mais ou menos explícita, que coloca professores e alunos e, mais geralmente, jovens e adultos, em campos opostos, impedindo sua cooperação.
(4) A necessidade de regularmente dar notas ou fazer apreciações qualitativas baseadas em uma avaliação padronizada favorece uma transposição didática conservadora.
(5) O trabalho escolar tende a privilegiar atividades fechadas, estruturadas,
desgastadas, que podem ser retomadas no quadro de uma avaliação clássica.
(6) O sistema clássico de avaliação força os professores a preferir os conhecimentos isoláveis e cifráveis às competências de alto nível (raciocínio, comunicação), difíceis de delimitar em uma prova escrita ou em tarefas individuais.
(7) Sob a aparência de exatidão, a avaliação tradicional esconde uma grande arbitrariedade, difícil de alcançar unanimidade em uma equipe pedagógica: como se entender quando não se sabe nem explicitar, nem justificar o que realmente se avalia?
Nem todos esses mecanismos ocorrem ao mesmo tempo e nem sempre são suficientemente fortes para impedir totalmente a inovação. No entanto, são freios que devem ser considerados em uma estratégia de mudança das práticas pedagógicas.
Isso não quer dizer que basta mudar a avaliação para que o resto se transforme como por milagre. A mudança das práticas pedagógicas se choca com outros obstáculos.
A avaliação tradicional é uma amarra importante, que impede ou atrasa todo tipo de outras mudanças. Soltá-la é, portanto, abrir a porta a outras inovações.
Nenhuma inovação pedagógica maior pode ignorar o sistema de avaliaçã ou esperar contorná-lo. Consequentemente, é necessário em qualquer projeto de reforma, em qualquer estratégia de inovação, levar em conta o sistema e as práticas de avaliação, integrá-los à reflexão e modificá-los para permitir a mudança.
A PARCELA DE AVALIAÇÃO FORMATIVA EM TODA AVALIAÇÃO CONTÍNUA
Proponho considerar como formativa toda prática de avaliação contínua que pretenda contribuir para a regulação das aprendizagens e melhorar as aprendizagens em curso, qualquer que seja o quadro e qualquer que seja a extensão concreta da diferenciação do ensino.
Ensinar é esforçar-se para orientar o processo de aprendizagem para o domínio de um currículo definido, o que não acontece sem um mínimo de regulação dos processos de aprendizagem no decorrer do ano escolar. Essa regulação passa por intervenções corretoras, baseadas em uma apreciação dos progressos e do trabalho dos alunos. O que é isso senão uma forma rudimentar e “selvagem” de avaliação formativa?
A IDÉIA DE AVALIAÇÃO FORMATIVA
A ideia de avaliação formativa sistematiza o funcionamento, levando o professor a observar mais metodicamente os alunos, a compreender melhor seus funcionamentos, de modo a ajustar de maneira mais sistemática e individualizada suas intervenções pedagógicas e as situações didáticas que propõe, tudo isso na expectativa de otimizar as aprendizagens: "A avaliação formativa está portanto centrada essencial, direta e imediatamente sobre a gestão das aprendizagens dos alunos (pelo professor e pelos interessados)".
Essa concepção se situa abertamente na perspetiva de uma regulação intencional, cuja intenção seria determinar ao mesmo tempo o caminho já percorrido por cada um e aquele que resta a percorrer com vistas a intervir para otimizar os processos de aprendizagem em curso.
UTILIZAR TODOS OS RECURSOS POSSÍVEIS!
É formativa toda avaliação que ajuda o aluno a aprender e a se desenvolver, ou melhor, que participa da regulação das aprendizagens e do desenvolvimento no sentido de um projeto educativo.
Importa, claro, saber como a avaliação formativa ajuda o aluno a aprender e por que mediações ela retroage sobre os processos de aprendizagem.
Todavia, no estágio da definição, pouco importam as modalidades: a avaliação formativa define-se por seus efeitos de regulação dos processos de aprendizagem. Dos efeitos buscar-se-á a intervenção que os produz e, antes ainda, as observações e as representações que orientam essa intervenção.
a) Uma conceção ampla da observação
Melhor seria falar de observação formativa do que de avaliação.
Observar é construir uma representação realista das aprendizagens, de suas condições, de suas modalidades, de seus mecanismos, de seus resultados.
A observação é formativa quando permite orientar e otimizar as aprendizagens em curso sem preocupação de classificar certificar, selecionar.
A observação formativa pode ser instrumentada ou puramente intuitiva, aprofundada ou superficial, deliberada ou acidental, quantitativa ou qualitativa, longa ou curta, original ou banal, rigorosa ou aproximativa, pontual ou sistemática.
Para reorientar a ação pedagógica, é preciso, em geral, ter uma ideia do nível de domínio já atingido. Nada impede avaliar conhecimentos, fazer balanços. É possível também interessar-se pelos processos de aprendizagem, pelos métodos de trabalho, pelas atitudes do aluno, por sua inserção no grupo, ou melhor dizendo, por todos os aspetos cognitivos, afetivos, relacionais e materiais da situação didática.
b) Uma conceção ampla da intervenção
O desenvolvimento e a aprendizagem dependem de múltiplos fatores frequentemente entrelaçados.
Toda avaliação que contribua para otimizar, por pouco que seja, um ou vários dentre esses fatores pode ser considerada formativa. Não se vê motivo para se restringir à definição da tarefa ou às instruções, ao procedimento didático e a seus suportes, ao tempo conferido ao aluno ou ao apoio que a ele se dispensa.
Pode-se ajudar um aluno a progredir de muitas maneiras:
- explicando mais simplesmente, mais longa ou diferentemente;
- engajando-o em nova tarefa, mais mobilizadora ou mais proporcional a seus recursos;
- aliviando sua angústia, devolvendo-lhe a confiança, propondo-lhe outras razões de agir ou de aprender;
- colocando-o em um outro quadro social, desdramatizando a situação, redefinindo a relação ou o contrato didático, modificando o ritmo de trabalho e de progressão, a natureza das sanções e das recompensas, a parcela de autonomia e de responsabilidade do aluno.
c) Uma conceção ampla da regulação
A propósito de avaliação formativa e, mais geralmente, de pedagogia de domínio, Allal distinguiu três tipos de regulação que se podem combinar:
(1) as regulações retroativas, que sobrevêm ao termo de uma sequência de aprendizagem mais ou menos longa a partir de uma avaliação pontual;
(2) as regulações interativas, que sobrevêm ao longo de todo o processo de aprendizagem;
(3) as regulações “proativas”, que sobrevêm no momento de engajar o aluno em uma atividade ou situação didática novas.
Quanto a regulação interativa, é preciso associá-la a uma modalidade de direção de classe e de diferenciação do ensino. Certamente, definindo microssequências de trabalho, ou mesmo de ensino, pode-se levar toda regulação interativa a uma regulação proativa ou retroativa e reencontrar-se em uma lógica da antecipação ou da remediação.
O interesse do conceito é justamente fazer a avaliação formativa pender para o lado da comunicação contínua entre professores e alunos (Cardinet, 1988). Nesse espírito, melhor seria considerar as regulações proativas e retroativas como formas um pouco frustradas de regulação interativa, concessões às condições de trabalho que, na maior parte das classes, impedem uma interação equilibrada com todos os alunos.
A regulação interativa é prioritária porque só ela é verdadeiramente capaz de agir sobre o fracasso escolar.
c.1) A didática como dispositivo de regulação
Como conceber dispositivos didáticos favoráveis a uma regulação contínua das aprendizagens?
Conceber a didática como dispositivo de regulação é romper com uma distinção clássica, senão sempre explícita, entre um tempo do ensino, no sentido amplo, e um tempo da regulação. Esse esquema supõe que se possa, com razão, dissociar dois momentos sucessivos na ação pedagógica:
- em um primeiro momento, o professor faria os alunos trabalharem, na base de uma hipótese didática otimista;
- em um segundo momento, ele se dedicaria (na medida de seus meios) a corrigir e a diferenciar essa primeira ação global, intervindo junto a certos alunos ou subgrupos em dificuldade.
Hoje, as didáticas melhor concebidas não asseguram de antemão senão as aprendizagens de uma fração dos alunos, os melhores, dos quais se diz habitualmente que aprendem a despeito da escola e se conformam com todos os tipos de pedagogias. Alguns aprendem só o suficiente para sair-se honrosamente e progredir de série em série. Outros não aprendem nada ou quase nada e se acham rapidamente em situação muito difícil.
Para além da diversidade dos destinos escolares, percebe-se um único fenômeno: a impotência das pedagogias para gerar na maioria dos alunos, pelo menos nos momentos compartilhados, aprendizagens à altura das ambições declaradas da escola.
Sem descartar totalmente esses fatores, julgo que eles passam ao lado do essencial: o sucesso das aprendizagens se passa na regulação contínua e na correção dos erros, muito mais do que no gênio do método.
Sem as opor, seria melhor procurar o que as aprendizagens eficazes têm em comum. Encontrar-se-ia sem dúvida um denominador constante: regulações intensas e individualizadas ao longo de todo o processo.
Daí decorre a conceção da didática defendida aqui: um dispositivo que favorece uma regulação contínua das aprendizagens. A didática, deve concernir ao seguinte registro: antecipar, prever tudo o que fosse possível, mas saber que o erro e a aproximação são a regra, que será preciso retificar o alvo constantemente. Nesse espírito, a regulação não é um momento específico da ação pedagógica, é um componente permanente dela.
c.2) A regulação pela ação e a interação
Weiss (1989, 1993) propôs falar-se de interação formativa.
A aprendizagem nutre-se das regulações inseridas na própria situação, que obriga o aluno, conforme as interações, a ajustar sua ação ou suas representações, a identificar seus erros ou suas dúvidas, a levar em conta o ponto de vista de seus parceiros, ou seja, a aprender por ensaio e erro, conflitos cognitivos, cooperação intelectual ou qualquer outro mecanismo.
A ideia de que a aprendizagem e o desenvolvimento passam por uma interação com o real não é nova. Toda a psicologia genética piagetiana é indissociavelmente construtivista e interacionista.
A ação é fator de regulação do desenvolvimento e das aprendizagens muito simplesmente porque obriga o indivíduo a acomodar, diferenciar, reorganizar ou enriquecer seus esquemas de representação, de perceção e
de ação. A interação social o leva a decidir, a agir, a se posicionar, a participar de um movimento que o ultrapassa, a antecipar, a conduzir estratégias, a preservar seus interesses.
A aula tradicional “modernizada” é uma forma de interação social. Pode-se duvidar de sua eficácia, especialmente quanto à participação dos alunos mais fracos.
As pedagogias ativas buscam, pois, estruturas de interação menos dependentes do professor como personagem central (trabalhos de grupo), menos fechadas na escola (investigações, espetáculos) e que sejam acompanhadas de projetos, regras do jogo ou problemas que têm, para os alunos, mais sentido e atrativo do que os exercícios escolares convencionais.
c.3) A auto-regulação de ordem metacognitiva
A outra via promissora concerne ao que Bonniol e Nunziati chamaram de avaliação formadora. Não se trata mais de multiplicar os feedbacks externos, mas de formar o aluno para a autorregulação de seus próprios processos de pensamento e aprendizagem, partindo do princípio de que todo ser humano é, desde a primeira infância, capaz de representar, pelo menos parcialmente, seus próprios mecanismos mentais.
A avaliação formadora privilegia a autorregulação e a aquisição das competências correspondentes.
OS OBSTÁCULOS A UMA REGULAÇÃO EFICAZ
1- Uma lógica mais do conhecimento do que da aprendizagem: Em situação cotidiana de trabalho, dá-se mais ênfase aos conteúdos do que às aprendizagens muito específicas que esta ou aquela tarefa supostamente favorece.
2- Uma imagem muito vaga dos mecanismos da aprendizagem: para a maioria dos professores, a mente do aluno permanece uma caixa preta, na medida em que o que aí se passa não é diretamente observável. É difícil reconstituir todos seus processos de raciocínio, de compreensão, de memorização, de aprendizagem a partir daquilo que diz ou faz o aluno.
3- Regulações inacabadas: a falta de tempo. O professor tem a impressão de que deveria “se dividir em quatro”: tenta estar “em todo lugar ao mesmo tempo”, dedicar-se a cada um, estar disponível para todo mundo, para responder a seu sentimento pessoal da equidade - o direito que cada aluno tem de receber atenção - e também para fazer frente às demandas relativamente insistentes de uma parte dos alunos, a começar pelos mais favorecidos.
4- Regulações muito centradas sobre o êxito da tarefa: esse modo de orientação é o oposto dos princípios da escola ativa e da construção do saber pela atividade autônoma do sujeito.
UMA ABORDAGEM SISTÊMICA DA MUDANÇA
Para mudar as práticas no sentido de uma avaliação mais formativa, menos seletiva, talvez se deva mudar a escola, pois a avaliação está no centro do sistema didático e do sistema de ensino.
Transformá-la radicalmente é questionar um conjunto de equilíbrios frágeis. basta puxar o fio da avaliação para que toda a confusão pedagógica se desenrole.
1 - RELAÇÕES ENTRE AS FAMÍLIAS E A ESCOLA
Quando se fala do sistema de avaliação, a escola parece ainda muito próxima daquilo que os pais conheceram "em sua época", mesmo quando deixaram a escola há quatorze anos.
A avaliação tradicional os tranquiliza sobre as chances de êxito de seu filho ou os habitua, pelo contrário, à ideia de um fracasso possível, até mesmo provável. Preocupadas com a "carreira" de seus filhos, as famílias de classe média ou alta aprenderam o bom uso das informações dadas pela escola sobre seu trabalho, suas atitudes e suas aquisições. Elas sabem contestar certas tabelas ou certas correções, fazer contato com o professor para melhor compreender as razões de eventuais dificuldades e intervir junto à criança e sobretudo utilizar as notas ou as apreciações qualitativas para modular a pressão que exercem sobre os deveres e, mais geralmente, o sono, as saídas, o tempo livre, as atitudes de seu filho.
Mudar o sistema de avaliação leva necessariamente a privar uma boa parte dos pais de seus pontos de referência habituais, criando ao mesmo tempo incertezas e angústias. É um obstáculo importante à inovação pedagógica: se as crianças brincam é porque não trabalham e se preparam mal para a próxima prova; se trabalham em grupo, não se poderá avaliar individualmente seus méritos; se engajam-se em pesquisas, na preparação de um espetáculo, na escrita de um romance ou na montagem de uma exposição, os pais quase não vêem como essas atividades coletivas e pouco codificadas poderiam derivar em uma nota individual no boletim.
2 - ORGANIZAÇÃO DAS TURMAS E POSSIBILIDADES DE INDIVIDUALIZAÇÃO
Uma avaliação somente é formativa se desemboca em uma forma ou outra de regulação da ação pedagógica ou das aprendizagens. Ela não funciona sem regulação individualizada das aprendizagens.
A mudança das práticas de avaliação é então acompanhada por uma transformação do ensino, da gestão da aula, do cuidado com os alunos em dificuldade.
Uma avaliação formativa coloca à disposição do professor informações mais precisas, mais qualitativas, sobre os processos de aprendizagem, as atitudes e as aquisições dos alunos.
3 - DIDÁTICA E MÉTODOS DE ENSINO
A ideia de avaliação formativa desenvolveu-se no quadro da pedagogia de domínio ou de outras formas de pedagogia diferenciada, relativamente pouco preocupadas com os conteúdos específicos dos ensinos e das aprendizagens. A ênfase era dada às adaptações, ou seja, a uma organização mais individualizada dos itinerários de aprendizagem, baseada em objetivos mais explícitos, coletas de informação mais qualitativas e regulares e intervenções mais diversificadas.
No decorrer dos últimos anos, no plano teórico, assiste-se, especialmente no campo do francês (Allal, Bain e Perrenoud, 1993), mas isso se estenderá a outras disciplinas, a uma reintegração da avaliação formativa à didática. Em campo, contudo, essa reintegração levará tempo.
4 -CONTRATO DIDÁTICO, RELAÇÃO PEDAGÓGICA E OFICIO DE ALUNO
Ir em direção a uma avaliação mais formativa é transformar consideravelmente as regras do jogo dentro da sala de aula.
Em uma avaliação tradicional, o interesse do aluno é o de iludir, mascarar suas falhas e acentuar seus pontos fortes. O oficio de aluno consiste principalmente em desmontar as armadilhas colocadas pelo professor, decodificar suas expectativas, fazer escolhas econômicas durante a preparação e a realização das provas, saber negociar ajuda, correções mais favoráveis ou a anulação de uma prova mal sucedida. Em um sistema escolar comum, o aluno tem, sinceramente, excelentes razões para querer, antes de tudo, receber notas suficientes. Para isso, deve enganar, fingir ter compreendido e dominar por todos os meios, inclusive a preparação de última hora e a trapaça, a sedução e a mentira por pena.
Toda avaliação formativa baseia-se na aposta bastante otimista de que o aluno quer aprender e deseja ajuda para isso, isto é, que está pronto para revelar suas dúvidas, suas lacunas, suas dificuldades de compreensão da tarefa.
5 - ACORDO, CONTROLE, POLÍTICA INSTITUCIONAL
Não se faz avaliação formativa sozinho, porque apenas se pode avançar nesse sentido modificando bastante profundamente a cultura da organização escolar, não só em escala de sala de aula, mas também de estabelecimento.
Numa avaliação formativa Em vez de comparar taxas de fracassos ou médias de turmas, poder-se-iam comparar as aquisições reais e, portanto, distinguir mais claramente os professores mais e menos eficientes.
6 - PROGRAMAS, OBJETIVOS, EXIGÊNCIA
A introdução de uma pedagogia diferenciada e de uma avaliação formativa leva, cedo ou tarde, a mexer nos programas.
Ora, não se pode "matar todos os coelhos de uma só cajadada": é indispensável, para lutar contra o fracasso escolar, deter-se no essencial, no cerne dos programas, renunciando a todos os tipos de noções e de saberes que não são indispensáveis, ao menos não para todos os alunos.
Toda pedagogia diferenciada deve funcionar como um analisador crítico dos planos de estudos.
7 - SISTEMA DE SELEÇÃO E DE ORIENTAÇÃO
A vocação da avaliação formativa é a de contribuir para as aprendizagens.
Perante o fracasso, numa interpretação maximalista da pedagogia de domínio, poder-se-ia esforçar-se para dar constantemente novas chances, considerando que uma aprendizagem jamais é impossível, que jamais se "tentou tudo" para levá-la a cabo.
Na seleção e de orientação seria melhor que a seleção fosse encarnada por outros agentes, que não tivessem por tarefa ensinar, mas dizer quem atingiu um domínio suficiente para obter um diploma ou chegar a um ciclo de formação, dando conselhos, informações, indicações a partir das quais os alunos e suas famílias se determinariam com conhecimento de causa.
8 - SATISFAÇÕES PESSOAIS E PROFISSIONAIS
A avaliação tradicional é uma fonte de angústia para os alunos com dificuldade e até para os demais, que não têm grande coisa a temer, mas não o sabem...
Uma avaliação formativa somente pode ser cooperativa, negociada, matizada, mais centrada na tarefa e nos processos de aprendizagem do que na pessoa. Priva definitivamente do poder de classificar, de distinguir, de condenar globalmente alguém em função de seus desempenhos intelectuais.
CONCLUSÃO
Não se trata de substituir o ensino pela avaliação mas de implementar uma pedagogia diferenciada e reguladora da aprendizagem, ativa, construtivista, aberta, cooperativa e eficiente.
Transcrição de partes do livro de Philippe Perrenoud:
“CONSTRUIR AS COMPETÊNCIAS DESDE A ESCOLA”
Abordagem por Competências
Conhecimento e Competências
Afinal, vai-se à escola para adquirir conhecimentos, ou para desenvolver competências?
Essa pergunta oculta um mal-entendido e designa um verdadeiro dilema.
O mal-entendido está em acreditar que, ao desenvolverem-se competências, desiste-se de transmitir conhecimentos. Quase que a totalidade das ações humanas exige algum tipo de conhecimento, às vezes superficial, outras vezes aprofundado, oriundo da experiência pessoal, do senso comum, da cultura partilhada em um círculo de especialistas ou da pesquisa tecnológica ou científica.
O verdadeiro dilema: para construir competências, esta precisa de tempo, que é parte do tempo necessário para distribuir o conhecimento profundo.
Noção de competência: capacidade de agir eficazmente em um determinado tipo de situação, apoiada em conhecimentos, mas sem limitar-se a eles.
Quase toda ação mobiliza alguns conhecimentos, algumas vezes elementares e esparsos, outras vezes complexos e organizados em redes. Assim é, por exemplo, que conhecimentos bastante profundos são necessários para: analisar um texto e reconstituir as intenções do autor; traduzir de uma língua para outra; argumentar com a finalidade de convencer alguém cético ou um oponente; construir uma hipótese e verificá-la; identificar, enunciar e resolver um problema científico; detetar uma falha no raciocínio de um interlocutor; negociar e conduzir um projeto coletivo.
As competências manifestadas por essas ações não são, em si, conhecimentos; elas utilizam hipóteses, ou mobilizam tais conhecimentos.
Uma competência nunca é a implementação "racional" pura e simples de conhecimentos, de modelos de ação, de procedimentos. Formar em competências não pode levar a dar as costas à assimilação de conhecimentos, pois a apropriação de numerosos conhecimentos não permite, ipso facto, sua mobilização em situações de ação.
O reconhecimento da própria pertinência da noção de competência continua sendo um desafio nas ciências cognitivas, assim como na didática.
Alguns pesquisadores preferem ampliar a noção de conhecimento sem apelar para outros conceitos. Assim é que as ciências cognitivas têm conseguido, progressivamente, distinguir três tipos de conhecimentos:
- Os conhecimentos declarativos, os quais descrevem a realidade sob a forma de fatos, leis, constantes ou regularidades;
- Os conhecimentos procedimentais, os quais descrevem o procedimento a aplicar para obter-se algum tipo de resultado (por exemplo, os conhecimentos metodológicos);
- Os conhecimentos condicionais, os quais determinam as condições de validade dos conhecimentos procedimentais.
Melhor seria, no meu entender, aceitar o fato de que, cedo ou tarde, chega o momento em que o especialista, provido com os conhecimentos declarativos, procedimentais e condicionais mais confiáveis e mais aprofundados, deve julgar sua pertinência em relação à situação e mobilizá-los com discernimento. Ora, esse juízo ultrapassa a aplicação de uma regra ou de um conhecimento.
A construção de competências é inseparável da formação de esquemas de mobilização dos conhecimentos com discernimento, em tempo real, ao serviço de uma ação eficaz. Ora, os esquemas de mobilização de diversos recursos cognitivos em uma situação de ação complexa desenvolvem-se e estabilizam-se ao sabor da prática.
No ser humano, com efeito, os esquemas de mobilização não podem ser programados por uma intervenção externa. Não existe, a não ser nas novelas de ficção científica, nenhum "transplante de esquemas". O sujeito não pode tampouco construí-los por simples interiorização de um conhecimento procedimental. Os esquemas constroem-se ao sabor de um treinamento, de experiências renovadas, ao mesmo tempo redundantes e estruturantes, treinamento esse tanto mais eficaz quando associado a uma postura reflexiva.
CABEÇAS BEM-CHEIAS OU CABEÇAS BEM-FEITAS?
Tal treinamento só é possível se o sujeito tiver o tempo de viver as experiências e analisá-las.
Por essa razão é impossível, em um número limitado de anos de escolaridade, cobrir programas pletóricos de conhecimentos, senão abrindo mão, em grande medida, da construção de competências. Afinal de contas, conhecimentos e competências são estreitamente complementares, mas pode haver entre eles um conflito de prioridade, em particular na divisão do tempo de trabalho na aula:
Desenvolver uma competência é assunto da escola? Ou a escola deve limitar-se à transmissão do conhecimento?
O debate sobre as competências reanima o eterno debate sobre cabeças bem-feitas ou cabeças bem-cheias.
Desde que essa discussão existe, a escola procura seu caminho entre duas visões do currículo:
(1) uma consiste em percorrer o campo mais amplo possível de conhecimentos, sem preocupar-se com sua mobilização em determinada situação, o que equivale, mais ou menos abertamente, a confiar na formação profissionalizante ou na vida para garantir a construção de competências;
(2) a outra aceita limitar, de maneira drástica, a quantidade de conhecimentos ensinados e exigidos para exercitar de maneira intensiva, no âmbito escolar, sua mobilização em situação complexa.
A primeira visão parece dominar de modo constante a história da escola obrigatória, em particular no ensino médio, mas o equilíbrio das tendências está flutuando ao longo das décadas.
Para entender o mundo e agir sobre ele, não se deve, ao mesmo tempo, apropriar-se de conhecimentos profundos e construir competências suscetíveis de mobilizá-los corretamente?
A figura do especialista o atesta: ele se define, simultaneamente, como um cientista, um erudito, alguém que "leu todos os livros" e acumulou tesouros de conhecimentos por meio da experiência; alguém que tem intuição, senso clínico, savoir-jaire e o conjunto das capacidades que permitem antecipar, correr riscos, decidir, em suma, agir em situação de incerteza.
À pergunta: "Conhecimentos profundos ou perícia na implementação?", gostaríamos de responder: ambos!
O dilema educativo é, sobretudo, uma questão de prioridade.
Sendo impossível fazer tudo, no tempo e no espaço de uma formação profissionalizante inicial ou de uma escolaridade básica, o que fazer de mais útil? Quem, a longo prazo, poderia defender conhecimentos absolutamente inúteis para a ação, em seu sentido mais amplo? Inversamente, quem, hoje em dia, poderia continuar defendendo um utilitarismo estreito, limitado a alguns savoir-faire elementares?
Agir em uma sociedade mutante e complexa é, antes, entender, antecipar, avaliar, enfrentar a realidade com ferramentas intelectuais. Kurt Lewin, um dos fundadores da psicologia social, dizia "Nada é tão prático como uma boa teoria".
A discussão sobre as prioridade remete para conceções opostas da cultura, com mais ênfase no modo pelo qual nos apropriamos dele! O debate está organizando-se, há alguns anos, em torno da noção de competência e da sua pertinência no ensino geral.
A abordagem pelas competências tem-se desenvolvido nos países anglo-saxões e está ganhando espaço no mundo francófono. Na Bélgica, o ensino fundamental e a primeira série do ensino médio referem-se doravante a blocos de competências (Ministério da Educação, 1994). Em Quebec, a abordagem pelas competências norteou uma reforma completados programas dos Colégios de Ensino Geral e Profissionalizante (CEGEP), que estão situados, na organização norte-americana, entre o liceu e a universidade, a exemplo dos colégios americanos.
Na verdade, a questão das competências e da relação conhecimentos-competências está no centro de um certo número de reformas curriculares em muitos países, mais especialmente no ensino médio. No ensino fundamental, a formação das competências é, em certo sentido, mais evidente e envolve os chamados "savoir-faire elementares: ler, escrever, etc. A partir dos oito anos, as disciplinas multiplicam-se, e a problemática conhecimentos-competências instala-se.
A IRRESISTÍVEL ASCENSÃO
As competências estão no fundamento da flexibilidade dos sistemas e das relações sociais.
Na maioria das sociedades animais, a programação das condutas proíbe qualquer invenção, e a menor perturbação externa pode desorganizar uma colmeia, pois ela é organizada como uma máquina de precisão.
As sociedades humanas, ao contrário, são conjuntos vagos e ordens negociadas. Não funcionam como relógios e admitem uma parte importante de desordem e incerteza, o que não é fatal, pois os atores têm, ao mesmo tempo, o desejo e a capacidade de criar algo novo, conforme complexas transações. Portanto, não é anormal que os sistemas educacionais preocupem-se com o desenvolvimento das competências correspondentes.
Ainda assim, essa preocupação não domina constantemente as políticas educacionais e a reflexão sobre os programas. Por que será que vemos atualmente o que Romainville (1996) chama de uma "irresistível ascensão" da noção de competência em educação escolar?
A explicação mais evidente consiste em invocar uma espécie de contágio: como o mundo do trabalho apropriou-se da noção de competência, a escola estaria seguindo seus passos, sob o pretexto de modernizar-se e de inserir-se na corrente dos valores da economia de mercado, como gestão dos recursos humanos, busca da qualidade total, valorização da excelência, exigência de uma maior mobilidade dos trabalhadores e da organização do trabalho.
No campo profissional, ninguém contesta que os empíricos devam ser capazes de "fazer coisas difíceis" e que passem por uma formação. A noção de qualificação tem permitido por muito tempo pensar as exigências dos postos de trabalho e as disposições requeridas daqueles que os ocupam.
As transformações do trabalho - rumo a uma flexibilidade maior dos procedimentos, dos postos e das estruturas - e a análise ergonômica mais fina dos gestos e das estratégias dos profissionais levaram a enfatizar, para qualificações formais iguais, as competências diferenciadas, evolutivas, ligadas à história de vida das pessoas.
Já não é suficiente definir qualificações-padrão e, sobre essa base, alocar os indivíduos nos postos de trabalho. O que se quer é gerenciar competências (Lévy-Leboyer, 1996), estabelecer tanto balanços individuais como "árvores" de conhecimentos ou competências que representem o potencial coletivo de uma empresa (Authier e Lévy, 1996).
Entende-se, então, por que se fala, nas formações profissionalizantes e de maneira cada vez mais banal, em "referenciais de competências", uma linguagem bastante familiar entre as empresas e os profissionais do ramo.
As transformações observáveis no mercado de trabalho e nas formações profissionalizantes exercem, provavelmente, certos efeitos sobre a escolaridade fundamental e sobre a conceção da cultura geral ali prevalecente. No entanto, isso não basta para explicar o uso crescente da noção de competências no âmbito da escola obrigatória.
O sistema educacional tem sido construído sempre "a partir de cima": as universidades e as grandes escolas é que definem o horizonte dos liceus, enquanto estes determinam as finalidades dos colégios, os quais, por sua vez, fixam as exigências para a escola primária.
Ora, embora as universidades não desprezem as competências, em particular nos campos onde elas assumem abertamente uma missão de formação profissionalizante, elas não lhes conferem um estatuto dos mais prestigiosos. Ao contrário, pode-se dizer que, mesmo quando formam competências, elas têm o pudor de não designá-las e preferem enfatizar o saber erudito, teórico e metodológico. Raramente se vêem documentados os objetivos de uma formação universitária e, menos ainda, formulados na linguagem das competências.
Ou seja, não são em absoluto as universidades que incentivam o ensino médio a reformular seus programas em termos de competências.
Se a universidade não induz a uma abordagem pelas competências no ensino médio, será que podemos dizer que, nessa matéria, a escola obrigatória sofre antes a influência das formações profissionalizantes que a seguem?
Talvez a atenção dada às competências possa levar os meios econômicos a encorajarem a escola obrigatória a dirigir sua ação na mesma direção. Sua influência, porém, não é recente, nem absoluta. No entanto, ela não basta para explicar a moda da noção da competência no campo pedagógico.
E então, o que está ocorrendo?
Absolutamente nada de novo: em uma linguagem mais moderna, a atual problemática das competências está reanimando um debate tão antigo como a escola, que opõe os defensores de uma cultura gratuita e os partidários do utilitarismo, seja este de esquerda ou de direita.
Entre os adultos que aderem à ideia de que a escola serve para aprender coisas diretamente úteis à vida, encontram-se, sem surpresa, os fortemente engajados na indústria e nos negócios, enquanto os que trabalham e encontram suas identidades em atividade para o ser humano (na função pública, na arte ou na pesquisa) defendem uma visão mais ampla da escolaridade.
Os movimentos de escola nova e pedagogia ativa (por exemplo, o Grupo Francês de Educação Nova, 1996) juntam-se ao mundo do trabalho na defesa de uma escolaridade que permita a apreensão da realidade. Apesar das diferenças ideológicas, eles estão unidos por uma tese: para que serve ir à escola, se não se adquire nela os meios para agir no e sobre o mundo.
Enquanto há aqueles que falam na necessidade de adaptação à concorrência econômica e à modernização do aparelho de produção, outros falam em autonomia e democracia.
Ainda assim, o sistema de ensino está preso, desde o surgimento da forma escolar, a uma tensão entre os que querem transmitir a cultura e os conhecimentos por si e os que querem, nem que seja em visões contraditórias, ligá-los muito rapidamente a práticas sociais.
Conservadores e inovadores, defensores das elites ou da democracia: nenhum desses "campos" é totalmente homogéneo.
UMA POSSÍVEL RESPOSTA À CRISE DA ESCOLA?
Dentro do sistema educacional, está-se tomando consciência do fato de que a explosão dos orçamentos e a inflação dos programas não foram acompanhados por uma elevação proporcional dos níveis reais de formação. A procura pela escola está crescendo, mas a formação não evolui no mesmo ritmo. O nível está subindo (Baudelot e Establet, 1989), mas será que está subindo com a velocidade necessária?
As esperanças suscitadas pela democratização do ensino foram dececionantes: um número cada vez maior de jovens adquire maior escolaridade, mas eles serão mais tolerantes, mais responsáveis, mais capazes do que seus predecessores para agir e para viver em sociedade?
Apesar das políticas ambiciosas, que dizer dos que ainda saem da escola sem nenhuma qualificação, quando não analfabetos (Baudelot, 1996), dos que o fracasso escolar convenceu de sua indignidade cultural e prometeu à miséria do mundo, ao desemprego ou aos subempregos, em uma sociedade dual?
Em cada sociedade desenvolvida, a opinião púbica e a classe política não estão mais dispostas a somente apoiar o crescimento sem fim dos orçamentos da educação, mas também exigem a prestação de contas, querem uma escola mais eficaz, que prepare melhor para a vida sem, por isso, custar mais caro. A corrida aos diplomas perde sua pertinência junto com a desvalorização dos títulos e a rarefação dos empregos, mas abandoná-la levaria a correr riscos ainda maiores.
Os adultos exercem uma pressão constante sobre os jovens, os quais acreditam cada vez menos que o sucesso escolar irá protegê-los das dificuldades da existência. Assim, pede-se à escola que instrua uma juventude cuja adesão ao projeto de escolarização não está mais garantida.
Na escola, ao menos nas carreiras nobres, tratou-se sempre de desenvolver as "faculdades gerais" ou o "pensamento", além da assimilação dos conhecimentos. O acento dado às competências não chega tão longe.
A abordagem por competências não rejeita nem os conteúdos, nem as disciplinas, mas sim acentua sua implementação. Aceitar uma abordagem por competências é, portanto, uma questão ao mesmo tempo de continuidade e de mudança, de rutura até, pois as rotinas pedagógicas e didáticas, as compartimentações disciplinares, a segmentação do currículo, o peso da avaliação c da seleção, as imposições da organização escolar, a necessidade de tornar rotineiros o ofício de professor e o ofício de aluno têm levado a pedagogias e didáticas que, às vezes, não contribuem muito para construir competências, mas apenas para obter aprovação em exames...
Desse modo, a inovação consistiria, não em fazer emergir a ideia de competência na escola, mas sim em aceitar "todo programa orientado pelo desenvolvimento de competências, as quais têm um poder de gerenciamento sobre os conhecimentos disciplinares" (Tardif, 1996, p. 45).
Essa orientação vai revelar-se fundada ou não passará de mais uma miragem? É difícil dizê-lo.
A historia da escola está marcada por momentos de "'pensamento mágico” em que cada um quer acreditar que, mudando-se as palavras, a vida também muda.
Por ora, a abordagem por competências agita, antes de tudo, o mundo dos que concebem ou debatem programas.
Só preocupará os professores, se os textos oficiais impuserem uma abordagem por competências de maneira precisa o bastante para tornar-se incontornável e obrigarem para a sua prática de ensino e avaliação na sala de aula.
Essa abordagem corre o risco de uma vigorosa rejeição por parte dos docentes, que não verão seus fundamentos e seu interesse ou, quando apreenderem suas intenções e consequências, não aderirão a ela, por boas ou más razões.
Como de costume, os que defendem uma nova orientação dos programas não têm como demonstrar o valor incontestável da mudança que estão propondo. Quando a pesquisa em ciências humanas estiver mais avançada, as coisas ficarão mas claras. Atualmente, não se pode afirmar que estamos trabalhando em bases firmes. Não é confortável, mas pior ainda seria negá-lo e agir como se soubéssemos como se formam as mentes e as competências fundamentais.
A reforma do ensino e o atual debate sobre a escola levam a questões teóricas de fundo, notadamente sobre a natureza e a gênese da capacidade do ser humano de enfrentar situações inéditas, para dar-lhes um significado e para agir com discernimento.
Nada mais normal, então, que se enfrentem conceções diversas e divergentes do aprendizado e da cultura, sendo que nenhuma delas dispõe dos meios para impor-se de maneira puramente racional, no estágio atual da pesquisa.
Paralelamente a esse debate de fundo, convém medir as implicações de uma abordagem por competências para a totalidade do funcionamento pedagógico e didático.
Esse debate leva-nos ao centro das contradições da escola, que oscila entre dois paradigmas - ensinar conhecimentos ou desenvolver competências -, entre uma abordagem "clássica", que privilegia aulas e temas, manuais e provas, e uma abordagem mais inspirada nas novas pedagogias e nas formações de adultos.
O QUE ESTÁ EM JOGO NA FORMAÇÃO
Concebidas dessa maneira, as competências são importantes metas da formação.
Elas podem responder a uma demanda social dirigida para a adaptação ao mercado e às mudanças e também podem fornecer os meios para apreender a realidade e não ficar indefeso nas relações sociais.
Procuremos aqui nos equilibrar entre um otimismo beato e um negativismo de princípio. Para dizê-lo em duas teses:
A abordagem pelas competências não se opõe à cultura geral, a não ser que esta última receba uma orientação enciclopédica.
Ao reduzir-se a cultura geral a uma acumulação de conhecimentos, por mais ricos e organizados que sejam, delega-se sua transferência e a construção de competências às formações profissionalizantes, com a exceção de certas competências disciplinares consideradas fundamentais.
Essa não é a única conceção possível. A própria essência de uma cultura geral não será preparar os jovens para entender e transformar o mundo em que vivem?
COMPETÊNCIAS E PRÁTICAS SOCIAIS
Toda competência está, fundamentalmente, ligada a uma prática social de certa complexidade. Não a um gesto dado, mas sim a um conjunto de gestos, posturas e palavras inscritos na prática que lhes confere sentido e continuidade.
Nas formações profissionalizantes, pretende-se preparar para um ofício que confrontará a prática com situações de trabalho que, a despeito da singularidade de cada um, poderão ser dominadas graças a competências de uma certa generalidade.
Nas formações escolares gerais, na medida em que elas não levam a nenhuma profissão em particular, qual será, então, o princípio de identificação das situações a partir das quais poderiam ser detetadas competências? Diante desse problema, pode-se distinguir duas estratégias:
- a primeira consiste em enfatizar competências transversais, uma vez que sua própria existência está sendo contestada (Rey, 1996), e
- a segunda é a de "fazer como se" as disciplinas já formassem para competências, cujo exercício na aula prefiguraria a implementação na vida profissional ou na extraprofissional.
À PROCURA DE COMPETÊNCIAS TRANSVERSAIS
Para escrever programas escolares que visem explicitamente ao desenvolvimento de competências, pode-se tirar, de diversas práticas sociais, situações problemáticas das quais serão "extraídas" competências ditas transversais. Em geral, as características gerais da ação humana, quer dependam do "agir comunicacional", quer da ação técnica: ler, escrever, observar, comparar, calcular, antecipar, planejar, julgar, avaliar, decidir, comunicar, informar, explicar, argumentar, convencer, negociar, adaptar, imaginar, analisar, entender, etc.
Assim, é perfeitamente possível e legítimo dar sentido a verbos como argumentar, prever ou analisar.
Argumentar: "Discutir, recorrendo a argumentos, provar ou contestar algo por meio de argumentos".
Argumento: "Raciocínio destinado a provar ou refutar uma proposição e, por extensão, prova para apoiar ou rejeitar uma proposição".
Prever: "Conhecer e anunciar (algo futuro) como havendo de ser, havendo de produzir". Previsão: Ato de prever, conhecimento do futuro.
Analisar: "Fazer a análise de...".
Análise: "Operação intelectual que consiste em decompor um texto em seus elementos essenciais, para apreender suas relações e dar ura esquema do conjunto" ou "ato de decompor uma mistura para separar seus constituintes".
PRÁTICAS DE REFERÊNCIA E DE TRANSPOSIÇÃO
Essa problemática é embaraçosa para quem deseja elaborar um referencial de competências transversais.
Por definição, tal referencial é padrão, pois convida os que o utilizam a aceitarem os conjuntos de situações escolhidos pelos autores do referencial, ou seja, sua visão do mundo.
Essa maneira de agir é parcialmente defensável no campo das profissões, devido à referência comum a uma cultura profissional que propõe uma tipologia das situações de trabalho.
Nada existe de equivalente para as situações da vida. As ações e as operações repertoriadas no dicionário — imaginar, raciocinar, analisar, antecipar, etc. — não correspondem a situações identificáveis, tão abstrato é seu nível de formulação e a ausência de referência a um certo contexto, a um desafio, a uma prática social. Tal problema surge em cada disciplina.
Se as competências serão formadas pela prática, isso deve ocorrer, necessariamente, em situações concretas, com conteúdos, contextos e riscos identificados.
Quando o programa não propõe nenhum contexto, entrega aos professores a responsabilidade, isto é, o poder e o risco de determiná-lo.
COMPETÊNCIAS E DISCIPLINAS
Alguns temem que desenvolver competências na escola levaria a renunciar às disciplinas de ensino e apostar tudo em competências transversais e em uma formação pluri, inter ou transdisciplinar.
Esse temor é infundado: a questão é saber qual conceção das disciplinas escolares adotar.
Em toda a hipótese, as competências mobilizam conhecimentos dos quais, grande parte é e continuará sendo de ordem disciplinar, até que a organização dos conhecimentos eruditos distinga as disciplinas, de modo que cada uma assuma um nível ou um componente da realidade.
ENTRE O "TUDO DISCIPLINAR" E O "TUDO TRANSVERSAL"
Se cada competência for referida a um conjunto de situações, a questão crucial é de ordem empírica: será que as situações mais prováveis recorrem prioritariamente aos recursos de uma disciplina? De várias disciplinas? De todas elas? De nenhuma?
Várias hipóteses podem e devem ser consideradas.
(1) Há situações cujo domínio encontra seus recursos, essencialmente, em uma única disciplina:
(2) Há situações cujo domínio encontra seus recursos em várias disciplinas identificáveis. E o caso de muitas situações de vida fora da escola, no trabalho e fora do trabalho.
(3) Existem situações cujo domínio não passa por nenhum conhecimento disciplinar - exceto a língua materna.
Pouco se sabe sobre a mobilização de conhecimentos disciplinares nas situações da vida. Seria salutar multiplicar as investigações sobre os conhecimentos que as pessoas utilizam efetivamente em sua vida, suas fontes, seus modos de apropriação. Talvez um estudo aprofundado mostrasse que os conhecimentos disciplinares são menos importantes do que os especialistas acreditam, porém estão presentes, ao menos marginalmente, em um grande número de situações, mesmo quando não são aprendidos na escola.
No entanto, pode-se avançar na hipótese de que o que tiver aprendido em outro lugar, paralelamente ou mais tarde, organizou-se, em parte, a partir das noções básicas e da matriz disciplinar implementada pelo ensino fundamental.
A honestidade está em dizer, hoje, que não sabemos exatamente qual é a utilidade das disciplinas escolares - além de ler, escrever e contar - na vida diária das pessoas que não seguiram estudos superiores. A razão é muito simples: historicamente, a escolaridade tem sido construída para preparar os estudos universitários. E muito recente a preocupação com sua relação com as situações da vida profissional e não-profissional.
O fato de nem a escola primária, nem sequer a escola de ensino médio deixarem de construir um nível final de estudos obriga a interrogar-se sobre a finalidade desses ciclos de aprendizado, sem ignorar que doravante eles preparam para uma grande diversidade de destinos escolares e sociais.
A TRANSFERÊNCIA E A INTEGRAÇÃO DOS CONHECIMENTOS
Ainda hoje, e mais notadamente no ensino médio, pode-se pretender dispensar conhecimentos disciplinares sem preocupar-se com sua integração em competências ou com seu investimento em práticas sociais.
Esse "desligamento" pode fundar-se: (1) ora na impressão de que essa integração irá fazer-se por si, quando o sujeito estiver enfrentando situações complexas; (2) ora na recusa de assumir essa integração, cuja execução é entregue a outros formadores, a um acompanhamento por práticos mais experientes ou "à vida".
Essas duas razões pedem refutações distintas. A primeira é simplesmente desmentida pelos fatos: muitos alunos não têm nem os recursos pessoais, nem as ajudas externas necessárias para utilizar plenamente seus conhecimentos, quando essa mobilização não foi o objeto de nenhum treinamento.
Sabe-se agora que a transferência de conhecimentos ou sua integração em competências não são automáticas e passam por um trabalho, isto é, um acompanhamento pedagógico e didático sem o qual nada ocorrerá, a não ser para os alunos com grandes meios para isso (Mendelsohn, 1996; Perrenoud, 1997a). O que leva Tardif e Meirieu (1996) a defenderem que o não-escoramento ou, mais globalmente, o exercício da transferência fazem parte do trabalho regular da escola, notadamente para todos os alunos que não contam em sua família com os recursos ou apoios que a escola não pode, ou não quer proporcionar.
Seria igualmente leviano imaginar que o que não foi feito em tal nível de tal disciplina será feito no nível seguinte.
AS CONSEQUÊNCIAS PARA OS PROGRAMAS
Existe a tentação, na formação geral, de trabalhar separadamente capacidades descontextualizadas, definidas em um elevado nível de abstração: saber comunicar, raciocinar, argumentar, negociar, organizar, aprender, procurar informações, conduzir uma observação, construir uma estratégia, tomar ou justificar uma decisão.
Os especialistas dos programas e da avaliação padronizada podem apresentar essas capacidades gerais como competências, jogando com as ambiguidades do conceito ou, em uma posição defensiva, considerá-las como elementos ou ingredientes gerais de múltiplas competências.
Na falta de formar somente competências, a escola poderia, ao menos, além de fornecer conhecimentos, trabalhar capacidades descontextualizadas - sem referencia a situações específicas – porém "contextualizáveis", tais como saber explicar, saber interrogar-se ou saber raciocinar.
A linguagem das competências está invadindo os programas, porém não passa, muitas vezes, de uma roupagem nova com a qual se tapa ora as mais antigas faculdades da mente, ora os conhecimentos eruditos ensinados desde sempre.
Em suma, não basta acrescentar a qualquer conhecimento uma referência qualquer a uma ação (traduzir em forma gráfica, observar, verificar se...) para designar uma competência!
A IDÉIA DE "BLOCO DE COMPETÊNCIAS"
Um bloco de competências é um documento que enumera, de maneira organizada, as competências visadas por uma formação. Um bloco de competências não é um programa clássico, não diz o que deve ser ensinado, mas sim, na linguagem das competências, o que os alunos devem dominar.
A meta é antes fazer aprender do que ensinar.
Para o ensino obrigatório, tende a garantir para cada indivíduo um "capital mínimo" cujo nível, se estivesse aquém do esperado, tornaria a inserção social problemática.
A abordagem por competências junta-se às exigências da focalização sobre o aluno, e dos métodos ativos, pois convida, firmemente, os professores a:
- considerar os conhecimentos como recursos a serem mobilizados;
- trabalhar regularmente por problemas;
- criar ou utilizar outros meios de ensino;
- negociar e conduzir projetos com seus alunos;
- adotar um planeamento flexível e indicativo e improvisar;
- implementar e explicitar um novo contrato didático;
- praticar uma avaliação formadora em situação de trabalho;
- dirigir-se para uma menor compartimentação disciplinar.
CONVENCER OS ALUNOS A MUDAR DE OFÍCIO
- Transparência
O trabalho escolar tradicional estimula a mera apresentação de resultados, enquanto a abordagem por competências torna visíveis os processos, os ritmos e os modos de pensar e agir.
- Cooperação
Uma abordagem por competências não permite ao aluno que "se retire para sua barraca", mesmo para trabalhar. Um projeto de grande envergadura ou um problema complexo, normalmente, mobilizam um grupo, solicitam várias habilidades, no âmbito da divisão do trabalho, e também necessitam de uma coordenação das tarefas de uns e de outros.
- Tenacidade
Os exercícios escolares tradicionais são episódios sem amanhã. Completados ou não, certos ou errados, são abandonados com uma certa rapidez para deixar o lugar a outros.
Em um processo de projeto, o prazo do investimento é maior; pede-se aos alunos que não percam de vista o objetivo e que adiem a sua satisfação até a conclusão total, às vezes, para vários dias ou para várias semanas depois.
- Responsabilidade
As pedagogias de projeto vão nesse sentido, ou seja, o aluno assume novas responsabilidades para com terceiros.
A abordagem por competências o insere em um tecido de solidariedades que limitam sua liberdade.
O desafio de uma reforma do sistema educacional só será maior se ela beneficiar, prioritariamente, os alunos que fracassam na escola.
Philippe Perrenoud é um sociólogo suíco que é uma referência essencial para os educadores em virtude de suas ideias pioneiras sobre a profissionalização de professores e a avaliação de alunos. É doutor em sociologia e antropologia, professor da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Genebra e diretor do Laboratório de Pesquisas sobre a Inovação na Formação e na Educação (Life), também em Genebra.
Entrevista a Philippe Perrenoud por Paola Gentile e Roberta Bencini
Fonte: Revista Nova Escola on line - Fala, mestre!
A arte de construir competências
O objetivo da escola não deve ser passar conteúdos, mas preparar – todos – para a vida em uma sociedade moderna.
NE: O que é competência? Poderia me dar alguns exemplos?
Perrenoud:
Competência é a faculdade de mobilizar um conjunto de recursos cognitivos (saberes, capacidades, informações, etc) para solucionar com pertinência e eficácia uma série de situações. Três exemplos:
Esses são exemplos banais.
Outras competências estão ligadas a contextos culturais, profissionais e condições sociais. Os seres humanos não vivem todos as mesmas situações. Eles desenvolvem competências adaptadas a seu mundo. A selva das cidades exige competências diferentes da floresta virgem, os pobres têm problemas diferentes dos ricos para resolver. Algumas competências se desenvolvem em grande parte na escola. Outras não.
NE: De onde vem a ideia de competência na educação? Quando começou a ser empregada?
Perrenoud:
Quando a escola se preocupa em formar competências, em geral dá prioridade a recursos. De qualquer modo, a escola se preocupa mais com ingredientes de certas competências, e bem menos em colocá-las em sinergia nas situações complexas.
Durante a escolaridade básica, aprende-se a ler, a escrever, a contar, mas também a raciocinar, explicar, resumir, observar, comparar, desenhar e dúzias de outras capacidades gerais. Assimila-se conhecimentos disciplinares, como matemática, história, ciências, geografia etc. Mas a escola não tem a preocupação de ligar esses recursos a certas situações da vida. Quando se pergunta porque se ensina isso ou aquilo, a justificativa é geralmente baseada nas exigências da sequência do curso: ensina-se a contar para resolver problemas; aprende-se gramática para redigir um texto. Quando se faz referência à vida, apresenta-se um lado muito global: aprende-se para se tornar um cidadão, para se virar na vida, ter um bom trabalho, cuidar da sua saúde. A onda atual de competências está ancorada em duas constatações:
Isso não é dramático para quem faz estudos longos. É mais grave para quem frequenta a escola somente por alguns anos. Formulando-se mais explicitamente os objetivos da formação em termos de competência, luta-se abertamente contra a tentação da escola: de ensinar por ensinar, de marginalizar as referências às situações da vida; e de não perder tempo treinando a mobilização dos saberes para situações complexas.
A abordagem por competências é uma maneira de levar a sério, em outras palavras, uma problemática antiga, aquela de transferir conhecimentos.
NE: Quais as competências que os alunos devem ter adquirido ao terminar a escola?
Perrenoud:
É uma escolha da sociedade, que deve ser baseada em um conhecimento amplo e atualizado das práticas sociais.
Para elaborar um conjunto de competências, não basta nomear uma comissão de redação. Certos países contentaram-se em reformular os programas tradicionais, colocando um verbo de ação na frente dos saberes disciplinares. Onde se lia “ensinar o teorema de Pitágoras”, agora lê-se “servir-se do teorema de Pitágoras para resolver problemas de geometria”. Isso é maquiagem.
A descrição de competências deve partir da análise de situações, da ação, e disso derivar conhecimentos.
Há uma tendência em ir rápido demais em todos os países que se lançam na elaboração de programas sem dedicar tempo em observar as práticas sociais, identificando situações nas quais as pessoas são e serão verdadeiramente confrontadas.
O que sabemos verdadeiramente das competências que têm necessidade, no dia-a-dia, um desempregado, um imigrante, um portador de deficiência, uma mãe solteira, um dissidente, um jovem da periferia?
Se o sistema educativo não perder tempo reconstruindo a transposição didática, ele não questionará as finalidades da escola e se contentará em verter antigos conteúdos dentro de um novo recipiente. Na formação profissional, se estabelece uma profissão referencial na análise de situações de trabalho, depois se elaborou um referencial de competências, que fixa os objetivos da formação. Nada disso acontece na formação geral. Por isso, sob a capa de competências, dá-se ênfase a capacidades sem contexto. Resultado: conserva-se o essencial dos saberes necessários aos estudos longos, e os lobbies disciplinares ficam satisfeitos.
NE: O sr. poderia dar um exemplo daquilo que é preciso fazer?
Perrenoud:
Eu tentei um exercício para identificar as competências fundamentais para a autonomia das pessoas. Cheguei a oito grandes categorias:
1 - saber identificar, avaliar e valorizar suas possibilidades, seus direitos, seus limites e suas necessidades;
2 - saber formar e conduzir projetos e desenvolver estratégias, individualmente ou em grupo;
3 - saber analisar situações, relações e campos de força de forma sistêmica;
4 - saber cooperar, agir em sinergia, participar de uma atividade coletiva e partilhar liderança;
5 - saber construir e estimular organizações e sistemas de ação coletiva do tipo democrático;
6 - saber gerenciar e superar conflitos;
7 - saber conviver com regras, servir-se delas e elaborá-las;
8 - saber construir normas negociadas de convivência que superem diferenças culturais.
Em cada uma dessas grandes categorias, deveria ainda especificar concretamente grupos de situações. Por exemplo: saber desenvolver estratégias para manter o emprego em situações de reestruturação de uma empresa. A formulação de competências se afasta, então, das abstrações ideologicamente neutras. De pronto, a unanimidade está ameaçada e reaparece a ideia que os objetivos da escolaridade dependem de uma escolha da sociedade.
NE: A Unesco fez ou seguiu alguma experiência antes de recomendar essas mudanças dentro dos currículos e nas práticas da educação?
Perrenoud:
Eu não tenho uma resposta precisa. O movimento é internacional.
Nos países em desenvolvimento as metas não são as mesmas que nos países híper-escolarizados.
A Unesco observa que dentre as crianças que têm chance de ir à escola somente alguns anos, uma grande parte sai sem saber utilizar as coisas que aprenderam.
É preciso parar de pensar a escola básica como uma preparação para os estudos longos. Deve-se enxergá-la, ao contrário, como uma preparação de todos para a vida, aí compreendida a vida da criança e do adolescente, que não é simples.
NE: Nesse contexto, quais são as mudanças no papel do professor?
Perrenoud:
É inútil exigir esforços sobre-humanos aos professores, se o sistema educativo não faz nada além de adotar a linguagem das competências, sem nada mudar de fundamental.
O mais profundo indício de uma mudança em profundidade é a diminuição de peso dos conteúdos disciplinares e uma avaliação formativa e certificativa orientada claramente para as competências.
Como eu disse, as competências não dão as costas para os saberes, mas não se pode pretender desenvolvê-las sem dedicar o tempo necessário para colocá-las em prática. Não basta juntar uma situação de transferência no final de cada capítulo de um curso convencional.
Se o sistema muda – não somente reformulando seus programas em termos de desenvolvimento de competências verdadeiras, mas liberando disciplinas, introduzindo os ciclos de aprendizagem plurianuais ao longo do curso, chamando para a cooperação profissional, convidando para uma pedagogia diferenciada – então o professor deve mudar sua representação e sua prática.
NE: O que o professor deve fazer para modificar sua prática?
Perrenoud:
Para desenvolver competências é preciso, antes de tudo, trabalhar por problemas e por projetos, propor tarefas complexas e desafios que incitem os alunos a mobilizar seus conhecimentos e, em certa medida, completá-los.
Isso pressupõe uma pedagogia ativa, cooperativa, aberta para a cidade ou para o bairro, seja na zona urbana ou rural. Os professores devem parar de pensar que dar o curso é o cerne da profissão.
Ensinar, hoje, deveria consistir em conceber, encaixar e regular situações de aprendizagem, seguindo os princípios pedagógicos ativos construtivistas.
Para os adeptos da visão construtivista e interativa da aprendizagem, trabalhar no desenvolvimento de competências não é uma rutura. O obstáculo está mais em cima: como levar os professores habituados a cumprir rotinas a repensar sua profissão? Eles não desenvolverão competências se não se perceberem como organizadores de situações didáticas e de atividades que têm sentido para os alunos, envolvendo-os, e, ao mesmo tempo, gerando aprendizagens fundamentais.
NE: Quais são as qualidades profissionais que o professor deve ter para ajudar os alunos a desenvolver competências?
Perrenoud:
Antes de ter competências técnicas, ele deveria ser capaz de identificar e de valorizar suas próprias competências, dentro de sua profissão e dentro de outras práticas sociais. Isso exige um trabalho sobre sua própria relação com o saber.
Muitas vezes, um professor é alguém que ama o saber pelo saber, que é bem sucedido na escola, que tem uma identidade disciplinar forte desde o ensino secundário.
Se ele se coloca no lugar dos alunos que não são e não querem ser como ele, ele começará a procurar meios interessar sua turma por saberes não como algo em si mesmo, mas como ferramentas para compreender o mundo e agir sobre ele.
O principal recurso do professor é a postura reflexiva, sua capacidade de observar, de regular, de inovar, de aprender com os outros, com os alunos, com a experiência. Mas, com certeza, existem capacidades mais precisas:
- saber gerenciar a classe como uma comunidade educativa;
- saber organizar o trabalho no meio dos mais vastos espaços-tempos de formação (ciclos, projetos da escola);
- saber cooperar com os colegas, os pais e outros adultos;
- saber conceber e dar vida aos dispositivos pedagógicos complexos;
- saber suscitar e animar as etapas de um projeto como modo de trabalho regular;
- saber identificar e modificar aquilo que dá ou tira o sentido aos saberes e às atividades
escolares;
- saber criar e gerenciar situações problemas, identificar os obstáculos, analisar e reordenar as tarefas;
- saber observar os alunos nos trabalhos;
- saber avaliar as competências em construção.
NE: O que o professor pode fazer com as disciplinas? Como empregá-las dentro deste novo conceito?
Perrenoud:
Não se trata de renunciar às disciplinas, que são os campos do saber estruturados e estruturantes. Existem competências para dominantes disciplinares, para se trabalhar nesse quadro.
No ensino primário, é preciso, entretanto, preservar a polivalência dos professores, não “secundarizar” a escola primária.
No ensino secundário, pode-se desejar a não compartimentalização precoce e estanque, professores menos especializados, menos fechados dentro de uma só disciplina, que dizem ignorar as outras disciplinas.
É importante ainda não repartir todo o tempo escolar entre as disciplinas, deixar espaços que favoreçam as etapas do projeto, as encruzilhadas interdisciplinares ou as atividades de integração.
NE: Como fazer uma avaliação em uma escola orientada para o desenvolvimento de competências?
Perrenoud:
Não se formará competências na escolaridade básica a menos que se exija competências no momento da certificação.
A avaliação é o verdadeiro programa, ela indica aquilo que conta. É preciso, portanto, avaliar seriamente as competências.
Mas isso não pode ser feito com testes com lápis e papel. Pode-se inspirar nos princípios de avaliação autêntica elaborada por Wiggins. Para ele a avaliação:
- não inclui nada além das tarefas contextualizadas;
- diz respeito a problemas complexos;
- deve contribuir para que os estudantes desenvolvam ainda mais suas competências;
- exigir a utilização funcional dos conhecimentos disciplinares;
- não deve haver nenhum constrangimento de tempo fixo quando da avaliação das competências;
- a tarefa e suas exigências são conhecidas antes da situação de avaliação;
- exige um certa forma de colaboração entre os pares;
- leva em consideração as estratégias cognitivas e metacognitivas utilizadas pelos estudantes;
- a correção não deve levar em conta o que não sejam erros importantes na ótica da construção de competências.
NE: Em quanto tempo pode-se ver os resultados dessas mudanças no sistema de ensino?
Perrenoud:
Antes de avaliar as mudanças, melhor colocá-las em operação, não somente nos textos, mas no espírito e nas práticas.
Isso levará anos se for um trabalho sério. Pior seria acreditar que as práticas de ensino e aprendizagem mudam por decreto.
As mudanças exigidas passarão por uma espécie de revolução cultural, que será vivida primeiro pelos professores, mas também pelos alunos e seus pais.
Quando as práticas forem mudadas em larga escala, a mudança exigirá ainda anos para dar frutos visíveis, pois será preciso esperar mais de uma geração de estudantes que tenha passado por todos os ciclos.
Enquanto se espera, melhor implementar e acompanhar as mudanças do que procurar provas prematuras de sucesso.
NE: O que uma reforma como essa no ensino pode fazer por um país como o Brasil?
Perrenoud:
Seu país confronta-se com o desafio de escolarização de crianças e adolescentes e da formação de professores qualificados em todas as regiões. E também uma desigualdade frente à escola, com a reprovação e o abandono.
A abordagem por competências não vai resolver magicamente esses problemas.
Mais grave seria – já que os programas estão sendo reformados, tirar recursos de outras frentes.
Somente as estratégias sistêmicas são defensáveis.
Entretanto, não vamos negligenciar três suportes da abordagem por competências, caso ela atenda suas ambições:
- ela pode aumentar o sentido de trabalho escolar e modificar a relação com o saber dos alunos em dificuldade;
- favorecer as aproximações construtivistas, a avaliação formativa, a pedagogia diferenciada, que pode facilitar a assimilação ativa dos saberes;
- pode colocar os professores em movimento, incitá-los a falar de pedagogia e a cooperar no quadro de equipes ou de projetos do estabelecimento escolar.
Por isso, é sensato integrar desde já as abordagens por competências à formação – inicial e contínua – e à identidade profissional dos professores.
Não nos esqueçamos que, no final das contas, o objetivo principal é democratizar o acesso ao saber e às competências. Todo o resto não é senão um meio de atingir esse objetivo.
NE: O sr. agora está trabalhando em algum novo projeto ou assunto?
Perrenoud:
Eu continuo a trabalhar na transposição didática a partir das práticas, sobre os dispositivos de construção de competências, tanto na escola como na formação profissional no setor terciário da economia. Isso anda paralelo à uma reflexão sobre os ciclos de aprendizagem, a individualização dos percursos, a aproximação modular dos currículos.
Eu trabalho também com estratégias de mudanças e suas aberrações conhecidas, como demagogia, precipitação, busca de lucros políticos a curto prazo, pesos desmedidos de lobbies disciplinares, simplificação, incapacidade de orientar e de negociar mudanças complexas distribuídas ao longo de pelo menos dez anos, dificuldade de definir uma justa autonomia dos estabelecimentos.
Para saber mais
As 12 mentiras que o impulsionam o Capitalismo
Por Guilherme Alves Coelho – de Lisboa, em O diário
Fonte: http://anonbr-acao.blogspot.com/2012/03/os-12-mitos-do-capitalismo.html
Um comentário amargo, e frequente após os períodos eleitorais, é o de que “cada povo tem o governo que merece”. Trata-se de uma crítica errônea, que pode levar ao conformismo e à inércia e castiga os menos culpados. Não existem maus povos. Existem povos iletrados, mal informados, enganados, manipulados, iludidos por máquinas de propaganda que os atemorizam e lhes condicionam o pensamento. Todos os povos merecem sempre governos melhores.
A mentira e a manipulação são hoje armas de opressão e destruição em massa, tão eficazes e importantes como as armas de guerra tradicionais. Em muitas ocasiões são complementares destas. Tanto servem para ganhar eleições como para invadir e destruir países insubmissos.
São muitos e variados os tipos e meios de manipulação em que a ideologia capitalista se foi alicerçando ao longo do tempo.
Apresentam-se neste texto, sucintamente, alguns dos mitos mais comuns da mitologia capitalista.
1. No capitalismo, qualquer pessoa pode enriquecer à custa do seu trabalho
Pretende-se fazer crer que o regime capitalista conduz automaticamente qualquer pessoa a ser rica desde que se esforce muito.
O objetivo oculto é obter o apoio acrítico dos trabalhadores no sistema e a sua submissão, na esperança ilusória e culpabilizante em caso de fracasso, de um dia virem a ser também, patrões de sucesso.
Na verdade, a probabilidade de sucesso no sistema capitalista para o cidadão comum é igual a ganhar na loteria. O “sucesso capitalista” é, com raras exceções, fruto da manipulação e da falta de escrúpulos dos que dispõem de mais poder e influência. As fortunas em geral derivam diretamente de formas fraudulentas de atuação.
Este mito de que o sucesso é fruto de uma mistura de trabalho duro, alguma sorte, uma boa dose de fé e depende apenas da capacidade empreendedora e competitiva de cada um, é um dos mitos que tem levado mais pessoas a acreditar no sistema e a apoiá-lo. Mas também, após as tentativas falhadas, a resignarem-se pelo aparente fracasso pessoal e a esconderem que acreditam na indiferença. Trata-se dos tão apregoados empreendedorismo e competitividade.
2. O capitalismo gera riqueza e bem-estar para todos
Pretende-se fazer crer que a fórmula capitalista de acumulação de riqueza por uma minoria dará lugar, mais tarde ou mais cedo, à redistribuição da mesma.
O objetivo é permitir que os patrões acumulem indefinidamente sem serem questionados sobre a forma como o fizeram, nomeadamente sobre a exploração dos trabalhadores. Ao mesmo tempo, mantêm nestes a esperança de mais tarde serem recompensados pelo seu esforço e dedicação.
Na verdade, Marx já havia concluído em seus estudos que o objetivo final do capitalismo não é a distribuição da riqueza, mas a sua acumulação e concentração. O agravamento das diferenças entre ricos e pobres nas últimas décadas, nomeadamente após o neoliberalismo, provou isso claramente.
Este mito foi um dos mais difundidos durante a fase de “bem-estar social” pós-guerra, para superar os estados socialistas. Com a queda do adversário soviético, o capitalismo deixou também cair a máscara e perdeu credibilidade.
3. Estamos todos no mesmo barco
Pretende-se fazer crer que não há classes na sociedade, pelo que as responsabilidades pelos fracassos e crises são igualmente atribuídas a todos e, portanto pagas por todos.
O objetivo é criar um complexo de culpa junto dos trabalhadores que permita aos capitalistas arrecadar os lucros enquanto distribuem as despesas por todo o povo.
Na verdade, o pequeno número de multimilionários, porque detém o poder, é sempre autobeneficiado em relação à imensa maioria do povo, quer em impostos, quer em tráfico de influências, quer na especulação financeira, quer em off-shores, quer na corrupção e nepotismo etc. Esse núcleo, que constitui a classe dominante, pretende assim escamotear que é o único e exclusivo responsável pela situação de penúria dos povos e que deve pagar por isso.
Este é um dos mitos mais ideológicos do capitalismo ao negar a existência de classes.
4. Liberdade é igual a capitalismo
Pretende-se fazer crer que a verdadeira liberdade só se atinge com o capitalismo, através da chamada autorregulação proporcionada pelo mercado.
O objetivo aí é tornar o capitalismo uma espécie de religião em que tudo se organiza em seu redor e assim afastar os povos das grandes decisões macro-econômicas, indiscutíveis. A liberdade de negociar sem amarras seria o máximo da liberdade.
Na verdade, sabe-se que as estratégias político-económicas, muitas delas planejadas com grande antecipação, são quase sempre tomadas por um pequeno número de pessoas poderosas, à revelia dos povos e dos poderes instituídos, a quem ditam as suas orientações. Nessas reuniões, em cúpulas restritas e mesmo secretas, são definidas as grandes decisões financeiras e econômicas conjunturais ou estratégicas de longo prazo. Todas, ou quase todas essas resoluções, são fruto de negociações e acordos mais ou menos secretos entre os maiores empresas e multinacionais mundiais. O mercado é, pois, manipulado e não autorregulado. A liberdade plena no capitalismo existe de fato, mas apenas para os ricos e poderosos.
Este mito tem sido utilizado pelos dirigentes capitalistas para justificar, por exemplo, intervenções em outros países não submissos ao capitalismo, argumentando não haver neles liberdade, porque há regras.
5. Capitalismo igual a democracia
Pretende-se fazer crer que apenas no capitalismo há democracia.
O objetivo deste mito, que é complementar ao anterior, é impedir a discussão de outros modelos de sociedade, afirmando não haver alternativas a esse modelo e todos os outros serem ditaduras. Trata-se mais uma vez da apropriação pelo capitalismo, falseando-lhes o sentido, de conceitos caros aos povos, tais como liberdade e democracia.
Na realidade, estando a sociedade dividida em classes, a classe mais rica, embora seja ultraminoritária, domina sobre todas as demais. Trata-se da negação da democracia que, por definição, é o governo do povo, logo, da maioria. Esta “democracia” não passa, pois de uma ditadura disfarçada. As “reformas democráticas” não são mais que retrocessos, reações ao progresso. Daí deriva o termo reacionário, o que anda para trás.
Tal como o anterior, este mito também serve de pretexto para criticar e atacar os regimes de países não-capitalistas.
6. Eleições igual a democracia
Pretende-se fazer crer que o ato eleitoral é o sinônimo da democracia e esta se esgota nele.
O objetivo é denegrir ou diabolizar e impedir a discussão de outros sistemas político-eleitorais em que os dirigentes são estabelecidos por formas diversas das eleições burguesas, como por exemplo, pela idade, experiência, aceitação popular etc.
Na verdade, é no sistema capitalista, que tudo manipula e corrompe, que o voto é condicionado e as eleições são atos meramente formais. O simples fato de a classe burguesa minoritária vencer sempre as eleições demonstra o seu carácter não-representativo.
O mito de que, onde há eleições há democracia, é um dos mais enraizados, mesmo em algumas forças de esquerda.
7. Partidos alternantes igual a alternativos
Pretende-se fazer crer que os partidos burgueses que se alternam periodicamente no poder têm políticas alternativas.
O objetivo deste mito é perpetuar o sistema dentro dos limites da classe dominante, alimentando o mito de que a democracia está reduzida ao ato eleitoral.
Na verdade, este aparente sistema pluri ou bipartidário é um sistema monopartidário. Duas ou mais facções da mesma organização política, partilhando políticas capitalistas idênticas e complementares, alternam-se no poder, simulando partidos independentes, com políticas alternativas. O que é dado escolher aos povos não é o sistema que é sempre o capitalismo, mas apenas os agentes partidários que estão de turno como seus guardiões e continuadores.
O mito de que os partidos burgueses têm políticas independentes da classe dominante, chegando até a ser opostas, é um dos mais divulgados e importantes para manter o sistema a funcionar.
8. O eleito representa o povo e por isso pode decidir tudo por ele
Pretende-se fazer crer que o político, uma vez eleito, adquire plenos poderes e pode governar como quiser.
O objetivo deste mito é iludir o povo com promessas vãs e escamotear as verdadeiras medidas que serão levadas à prática.
Na verdade, uma vez no poder, o eleito autoassume novos poderes. Não cumpre o que prometeu e, o que é ainda mais grave, põe em prática medidas não enunciadas antes, muitas vezes em sentido oposto e até inconstitucionais. Frequentemente, são eleitos por minorias de votantes. Ao meio dos mandatos, já atingiram índices de popularidade mínimos. Nestes casos de ausência ou perda progressiva de representatividade, o sistema não contempla quaisquer formas constitucionais de destituição. Esta perda de representatividade é uma das razões que impede as “democracias” capitalistas de serem verdadeiras democracias, tornando-se ditaduras disfarçadas.
A prática sistemática deste processo de falsificação da democracia tornou este mito um dos mais desacreditados, sendo uma das causas principais da crescente abstenção eleitoral.
9. Não há alternativas à política capitalista
Pretende-se fazer crer que o capitalismo, embora não sendo perfeito, é o único regime político-econômico possível e, portanto, o mais adequado.
O objetivo é impedir que outros sistemas sejam conhecidos e comparados, usando todos os meios, incluindo a força, para afastar a competição.
Na realidade, existem outros sistemas político-económicos, sendo o mais conhecido o socialismo cientifico. Mesmo dentro do capitalismo, há modalidades que vão desde o atual neoliberalismo aos reformistas do “socialismo democrático” ou socialdemocrata.
Este mito faz parte da tentativa de intimidação dos povos de impedir a discussão de alternativas ao capitalismo, a que se convencionou chamar o pensamento único.
10. A austeridade gera riqueza
Pretende-se fazer crer que a culpa das crises econômicas é originada pelo excesso de regalias dos trabalhadores. Se estas forem retiradas, o Estado poupa e o país enriquece.
O objetivo é fundamentalmente transferir para o setor público, para o povo em geral e para os trabalhadores, a responsabilidade do pagamento das dividas dos capitalistas. Fazer o povo aceitar a pilhagem dos seus bens na crença de que dias melhores virão mais tarde. Destina-se também a facilitar a privatização dos bens públicos, “emagrecendo” o Estado, logo “poupando”, sem referir que esses setores eram os mais rentáveis do Estado, cujos lucros futuros se perdem desta forma.
Na verdade, constata-se que estas políticas conduzem, ano após ano, a um empobrecimento das receitas do Estado e a uma diminuição das regalias, direitos e do nível de vida dos povos, que antes estavam assegurados por elas.
11. Estado menor, Estado melhor
Pretende-se fazer crer que o setor privado administra melhor o Estado do que o setor público.
O objetivo dos capitalistas é “dourar a pílula” para facilitar a apropriação do patrimônio, das funções e dos bens rentáveis dos Estados. É complementar do anterior.
Na verdade o que acontece em geral é o contrário: os serviços públicos privatizados não apenas se tornam piores, como as tributações e as prestações são agravadas. O balanço dos resultados dos serviços prestados após passarem a privados é quase sempre pior que o anterior. Na ótica capitalista, a prestação de serviços públicos não passa de mera oportunidade de negócio. Este mito é um dos mais “ideológicos” do capitalismo neoliberal. Nele está subjacente a filosofia de que quem deve governar são os privados e o Estado apenas dá apoio.
12. A atual crise é passageira e será resolvida para o bem dos povos
Pretende-se fazer crer que a atual crise econômico-financeira é mais uma crise cíclica habitual do capitalismo e não uma crise sistêmica ou final.
O objetivo dos capitalistas, com destaque para os financeiros, é seguir na pilhagem dos Estados e na exploração dos povos enquanto puderem. Tem servido ainda para alguns políticos se manterem no poder, alimentando a esperança junto dos povos de que melhores dias virão se continuarem a votar neles.
Na verdade, tal como previu Marx, do que se trata é da crise final do sistema capitalista, com o crescente aumento da contradição entre o carácter social da produção e o lucro privado, até se tornar insolúvel.
Alguns, entre os quais os “socialistas” e sociais-democratas, que afirmam poder manter o capitalismo, embora de forma mitigada, afirmam que a crise deriva apenas de erros dos políticos, da ganância dos banqueiros e especuladores ou da falta de ideias dos dirigentes ou mecanismos que ainda falta resolver. No entanto, aquilo a que assistimos é ao agravamento permanente do nível de vida dos povos sem que esteja à vista qualquer esperança de melhoria. Dentro do sistema capitalista já nada mais há a esperar de bom.
NOTA FINAL
Hoje, mais do que nunca, é necessário criar barreiras ao assalto final da barbárie capitalista, e inverter a situação, quer apresentando claramente outras soluções políticas, quer combatendo o obscurantismo pelo esclarecimento, quer mobilizando e organizando os povos.
(*) Os mitos criados pelas religiões cristãs têm muito peso no pensamento único capitalista e são avidamente apropriados por ele para facilitar a aceitação do sistema pelos mais crédulos. Exemplos: “A pobreza é uma situação passageira da vida terrena.” “Sempre houve ricos e pobres.” “O rico será castigado no juízo final.” “Deve-se aguentar o sofrimento sem revolta para mais tarde ser recompensado.”
CONSIDERAÇÕES DO BLOGGER
Em adição ao artigo publicado, cito Luis Miguel Luzio dos Santos, economista, doutor em Ciências Sociais e professor do Departamento de Administração da UEL.
"O nosso tempo tem na concentração econômica e de poder e na naturalização da miséria uma das suas marcas mais expressivas, sendo o liberalismo econômico extremado o seu grande fomentador, intensificando desigualdades e alimentando as vantagens acumuladas por certos grupos ao longo do tempo, consolidando-se a injustiça e a exploração. A manipulação e a relativização da fé cristã vêm contribuindo para legitimar esse quadro, aceitando-o como inevitável, mantendo-se distante de projetos de desconstrução das estruturas sociais e econômicas causadoras de sofrimento e desamor".
"É bom lembrar que a estrutura capitalista e os ideais do liberalismo econômico, desde Adam Smith, passando por Hayek e Friedman, apoiam-se no individualismo, na busca dos próprios interesses, na disputa e no consumismo como principais mecanismos de organização da vida em sociedade. Nesse modelo, qualquer interferência externa, como regulação do mercado, estruturas sociais de apoio a grupos marginalizados ou mecanismos de distribuição de renda e de priorização do que é público, são vistas como anátemas ao restringirem as liberdades individuais e ao regularem a reprodução do capital – senhor justificador de todos os sacrifícios".
"Quando nos atemos aos fundamentos originais do cristianismo, é clara a sua centralidade na vivência da fraternidade, na cooperação, na solidariedade, no exercício da empatia e na busca da harmonia com a natureza, em suma, a priorização do bem comum".
"Será que era este o mundo idealizado por Cristo há 2000 anos quando clamava a que vivêssemos como irmãos, que morrêssemos para nós mesmos e que o egoísmo fosse sublimado em nome do amor? Uma coisa é certa, os valores que sustentam o capitalismo estão cada vez mais distantes da vida comunitária, sociocêntrica, baseada no bem-comum e apoiada na máxima cristã de “amar o próximo como a si mesmo”.
Acrescento, para reflexão:
1. O (Neo)liberalismo/capitalismo valoriza o capital em detrimento do trabalho, relegando os direitos do trabalhador para nível inferior (homem como meio, como objeto). O consumo é incentivado a todo custo. Segundo seus defensores, o consumo estimula a produção, que por sua vez, promove a abertura de postos de trabalho e o resultado desta equação é a prosperidade da sociedade como um todo.
O discurso soa bem até nos confrontarmos com as palavras de Jesus:
“Acautelai-vos e guardai-vos de toda espécie de cobiça; porque a vida do homem não consiste na abundância das coisas que possui.” (Lucas 12:15).
2. No capitalismo a concentração de capial também é valorizada, em discordância com a Palavra de Deus:
“Ai dos que ajuntam casa a casa, dos que acrescentam campo a campo, até que não haja mais lugar, de modo que habitem sós no meio da terra!” (Isaías 5:8).
"O amor do dinheiro é a raiz de toda espécie de males" (Timóteo 6:10).
“Não ajunteis para vós outros tesouros (bens) sobre a terra” (Mateus 6:19).
3. Apesar dos defensores do capitalismo afirmarem que todos saem ganhando, não é isso que constatamos. Quem lucra, nunca se dá por satisfeito. Os detentores dos meios de produção, bem como os banqueiros e donos dos veículos de comunicação querem sempre mais, e mais, e mais.. e, simultaneamente, reduzir gastos, o que tem significado redução de salários, substituição de mão-de-obra humana por máquinas, etc. Investe-se em publicidade e lobby político, ao passo que reduz-se o gasto com aqueles que mantém a máquina, os empregados. Tudo em nome da eficiência e da otimização dos lucros, movido pela ânsia do lucro. O capitalismo sem regulação tem promovido a exploração do trabalhador.
“Ai daquele que edifica a sua casa com iniqüidade, e os seus aposentos com injustiça; que se serve do trabalho do seu próximo sem remunerá-lo, e não lhe dá o salário” (Jeremias 22:13).
Pedagogia da Autonomia
Transcrição de partes de trabalho elaborado por:
Vicente Zatti - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
AUTONOMIA versus HETERONOMIA
A autonomia é a condição sóciohistórica de um povo ou pessoa que se tenha libertado, emancipado, das opressões que restringem ou anulam a liberdade de determinação; tem a ver com o que chama de “ser para si”. A autonomia está relacionada com a libertação.
A heteronomia é a condição de um indivíduo ou grupo social que se encontra em situação de opressão, de alienação, situação em que se é “ser para outro”.
As opressões, em geral, vão configurar uma situação de heteronomia, e uma educação voltada para a libertação pode conduzir as pessoas a serem autónomas.
Ele denuncia as realidades (social, político, econômico, educacional, que favorecem a perpetuação da heteronomia) que levam à heteronomia e propõe uma educação que busca construir uma realidade social que possibilite a autonomia, propõe um processo de ensino que possibilite a construção de condições para todos poderem ser “seres para si”.
Sua opção é de professor democrático e progressista que busca a superação da heteronomia e construção da autonomia.
- Opressão
A opressão, realidade histórica concreta da qual parte da humanidade é vítima, é a negação da vocação do homem de “ser mais”, é a negação da liberdade, negação do homem como “ser para si”, portanto, a condição de opressão é uma condição de heteronomia. Ao anular a vocação humana de ser mais, a opressão insere a dura realidade de ser menos. A opressão se verifica hoje em situações concretas como a miséria, a desigualdade social, a exploração do trabalho do homem, as relações autoritárias, etc, situações que fazem o homem viver em condição de heteronomia já que limitam ou anulam sua liberdade de optar e seu poder de realizar. A opressão é uma realidade desumanizante “que atinge aos que oprimem e aos oprimidos”.
Segundo Freire, a proibição de ser mais estabelecida pela opressão é em si mesma uma violência.
Um aspecto que contribui para a continuidade de situações ou condições de heteronomia é a adesão do oprimido ao opressor. O oprimido acaba adquirindo os valores dos opressores, e assim o modelo de humanidade que vai procurar realizar é o do opressor. Passa a defender a visão individualista de liberdade, o que lhe impede de lutar pela própria libertação.
“Em sua alienação, os oprimidos querem a todo custo parecer-se com o opressor, imitá-lo, segui-lo”.
No momento em que passam a desejar ser como o opressor, interiorizam suas opiniões e passam a desprezar a si mesmos, a se ver como incompetentes, incapazes, etc. Isso representa uma espécie de “dependência emocional”, e constitui uma forma de heteronomia, já que o oprimido não busca ser ele mesmo e ser para si, mas busca ser como o opressor, e dessa forma, acaba sendo para o opressor.
Muitas vezes, os oprimidos se reconhecem como tais e buscam sair da opressão, mas isso, no contexto de contradição e opressão em que vivem, significa ser opressor, por isso que libertação precisa implicar em superação da contradição opressor-oprimido. É a superação da contradição que traz ao mundo o homem novo, não mais oprimido nem opressor, o homem que é para si, o homem autônomo.
- Massificação e Medo da Liberdade
Paulo Freire observou que em muitos oprimidos, o que impede a libertação é o medo da liberdade, medo que os conduz a manterem-se na situação de oprimidos, medo que impede a autonomia.
O medo da liberdade surge a partir da prescrição. “Toda prescrição é a imposição da opção de uma consciência a outra”. Por isso ela é alienante, faz com que uma consciência “hospedeira”, a do oprimido, se guie por uma pauta estranha a si, a pauta dos opressores. Dessa forma, o homem oprimido se encontra em uma situação de heteronomia, já que sua consciência é pautada pelo outro (hetero) que o oprime.
De acordo com Freire, oprimidos vivem um trágico dilema entre querer ser e temer ser. Ao se descobrirem oprimidos, descobrem que não são livres. A luta se trava internamente, a vontade de serem autênticos, de expulsar o opressor, de sair da alienação, de serem atores da própria vida (autônomos) entra em conflito com o medo da liberdade. Por isso o autor diz que a libertação é um “parto doloroso”.
A massificação transforma os homens em seres passivos, acomodados, ajustados, incapazes de decidir, sem liberdade, e, portanto, heterônomos. Por isso, o homem não deve acomodar-se36 no mundo, e sim integrar-se37 no e com o mundo. “A integração resulta da capacidade de ajustar-se à realidade acrescida da vontade de transformá-la a que se junta a de optar, cuja nota fundamental é a criticidade”.
A integração é um conceito ativo que envolve além do ajustamento, a opção e a ação transformadora de um homem sujeito enraizado no seu mundo, por isso promove a autonomia.
A acomodação é fruto da prescrição que minimiza as decisões e faz com que se perca a capacidade de optar, por isso impede a autonomia. A acomodação vai implicar no simples ajustamento e na consequente massificação, situação em que a liberdade do sujeito e sua autonomia são negadas.
Freire denunciou que as tarefas do tempo do homem moderno em vez de serem fruto de decisão consciente a partir da própria realidade, são decisões de uma elite que por meio da prescrição, massifica, domestica, acomoda, rebaixando o homem à condição de objeto, fazendo-o heterônomo.
A escola promove a massificação enquanto pratica a mera repetição de idéias inertes, nega a participação, o debate e a análise dos problemas. Quando reduz a teoria a verbalismo transforma o processo educacional em ato mecânico. A educação que é verborosa, que prima apenas pela memorização mecânica, que não instiga o educando a superar suas posições ingênuas, está contribuindo para formar um ser humano com medo da própria liberdade, um ser humano incapaz de expulsar a consciência hospedeira, incapaz de superar a massificação, e, portanto, um ser humano que vive em condição heterônoma.
Paulo Freire denuncia que o verbalismo na cultura brasileira está relacionado à nossa experiência democrática: “Cada vez mais nos convencemos, aliás, de se encontrarem na nossa experiência democrática, as raízes deste nosso gosto pela palavra oca. Do verbo. Da ênfase nos discursos”. O verbalismo revela uma atitude mental do nosso povo que está ligada à ausência de criticidade e a superficialidade com que os problemas são tratados, há poucos espaços democráticos para que sejam dialogados e aprofundados. A criticidade está ligada à democracia.
Quanto menos democrática for uma nação, menor o conhecimento crítico da realidade, menor a participação, as formas de perceber a realidade serão ingênuas e as formas de expressá-la verborosas. Por isso, relações e espaços antidemocráticos, autoritários, são geradores de heteronomia.
- Sectarização e Irracionalismo
Toda relação de dominação, opressão, exploração é violenta, não importa se os meios usados para tal o são. Toda desumanização é uma forma de violência. Frente a tais situações as pessoas podem adotar atitudes diferentes: radicais ou sectárias.
Paulo Freire afirma ser um grande mal para a sociedade o fato de o homem, inclusive suas elites, em momentos desafiadores da história do país ter “descambado” para a sectarização.
“A sectarização tem uma matriz preponderantemente emocional e acrítica, por isso é irracional. É arrogante, antidialogal e por isso anticomunicativa”.
A sectarização, como qualquer irracionalismo, é uma forma de heteronomia, já que a autonomia supõe que o sujeito possa dar a própria lei ou os próprios princípios de sua ação pela própria razão ou em concordância com ela.
Segundo Freire, o sectário de esquerda, como o de direita, se põe diante da história como seu único fazedor, como seu dono, por isso o povo não tem importância, é reduzido à massa. O povo é apenas um meio para seus fins. O sectário procura pensar pelo povo e o vê como “menor” que deve ser protegido.
Freire coloca a radicalização como oposta a sectarização. A radicalização é preponderantemente crítica, é dialógica, não procura impor sua opinião, é amorosa. Ela não admite comodismos diante do poder opressor que desumaniza. Por isso não aceita em silêncio a violência, mas sua ação não é ativismo, é ação submetida à reflexão.
Conforme Freire, a sectarização se nutre pelo fanatismo, é mítica e alienante, o contrário da radicalização que é crítica e libertadora. Libertadora porque seu enraizamento engaja os homens na transformação concreta da realidade, criando uma condição favorável à autonomia.
“A sectarização, porque mítica e irracional, transforma a realidade numa falsa realidade, que, assim, não pode ser mudada”.
A sectarização é um obstáculo para a emancipação dos homens. O sectário em sua irracionalidade não percebe a dinâmica da realidade, o que lhe impossibilita perceber a unidade dialética. Por isso mesmo o homem de esquerda ao tornar-se sectário equivoca-se na sua interpretação pretendida dialética da realidade e cai em posições fatalistas transformando o futuro em algo já dado, pré-estabelecido. O sectário de direita pretende “domesticar” o presente para que o futuro seja igual, pretende evitar que a transformação ocorra. Ambas as formas são reacionárias porque negam a liberdade, se fecham em suas verdades, em seus “círculos de segurança”, fechando-se para o diálogo. Como é alienante, antidialogal, irracional e mantém a situação de opressão, a sectarização é uma forma de heteronomia.
- Ação Antidialógica
Para definir diálogo, Freire faz referência a Jaspers e afirma ser uma relação horizontal entre A e B, que nasce de uma matriz crítica e gera criticidade. O diálogo é oposto ao antidiálogo.
O antidiálogo implica numa relação vertical de A sobre B. Dessa forma o antidiálogo é acrítico, desamoroso, auto-suficiente, desesperançoso, arrogante, por isso não comunica e impede a autonomia.
É pela relação dialógica homem/natureza que o mundo é transformado e a história é feita.
A relação entre os homens é outro momento do mesmo diálogo. “O trabalho é uma relação entre os homens através da natureza”. Por isso, o trabalho deveria ser o principal domínio de diálogo entre os homens, que por meio dele humanizariam o mundo. A história concreta do homem nega o diálogo de muitas formas. Relações sociais em que uns sobrevivem do trabalho dos outros, em que uns criam aparatos culturais, econômicos, tecnológicos, para explorar e oprimir, são exemplos disso. Inclusive o sistema educacional, às vezes, é usado em favor da manutenção do antidiálogo, da opressão, de um sistema social que leva à heteronomia.
Característica bastante comum na educação antidialógica é o verbalismo. “Este modo de pensar, dissociado da ação que supõe um pensamento autêntico, perde-se em palavras falsas e ineficazes”.
Para Freire a palavra autêntica é práxis, deve manter o diálogo constante entre teoria e prática. Por isso, também a palavra que é só ação se transforma em ativismo. O diálogo é incompatível com a auto-suficiência e exige um pensar autêntico. Pensar que percebe a realidade historicamente e assim é capaz de superar a dicotomia homem-mundo.
O homem é um ser da práxis, do quefazer, diferente dos animais que são seres do puro fazer. “Os homens, pelo contrário, como seres do quefazer, ‘emergem’ dele e, objetivando-o, podem conhecê-lo e transformá-lo com seu trabalho”. O que torna o homem ser do quefazer é o fato de seu fazer ser ação e reflexão, ser práxis. Quefazer é o fazer do homem que é teoria e prática, ação e reflexão.
Freire denuncia que a ideologia opressora promove a absolutização da ignorância. Dessa forma, os opressores se reconhecem como os que nasceram para saber e reconhecem nos outros o seu oposto. Assim o diálogo fica impossibilitado e a opressão, a heteronomia se mantém. A desmistificação dessa idéia de ignorância das massas deve ser fruto do processo de libertação, os opressores jamais vão fazer isso, pois eles se beneficiam dessa situação. Aliás, o antidialógico, o dominador, quer conquistar aquele que lhe é oposto.
A conquista do oprimido é um traço marcante da ação antidialógica.
Para manter essa situação de conquista, de alienação e heteronomia vários mitos são mantidos pela ordem opressora. Um deles é que a ordem opressora é ordem da liberdade, de que todos são livres para fazer o que quiserem, trabalhar onde quiserem. Há muitos outros mitos como: todos por meio de seu esforço podem se tornar empresários bem sucedidos, todos tem direito a educação, todos são iguais independente da classe social que ocupam, o assistencialista é generoso, a revolução é um pecado contra Deus, uns são inferiores e outros superiores, etc.. Paulo Freire denuncia que esses mitos são introjetados nas massas populares pelos meios de comunicação. Eles são um dos principais mecanismos que mantêm a estrutura social opressora e desumanizante e que geram heteronomia.
Outra forma antidialógica que os dominadores usam para manter seu status quo é a divisão das massas populares. Dividido, o povo é presa fácil para a dominação, ou seja, não possui força para se libertar, para tornar-se autônomo, e como nos diz Freire, a forma que os homens possuem para se libertar, para Ser Mais, é em comunhão.
Ainda, outra característica da ação antidialógica é a manipulação das massas oprimidas. Pela manipulação os opressores conformam as massas de acordo com seus interesses e objetivos.
“A manipulação, na teoria da ação antidialógica, tal como a conquista a que serve, tem de anestesiar as massas populares para que não pensem”.
É a manipulação que impede ao oprimido de pensar certo, que implicaria na conscientização, caminho para a libertação. As elites sabem disso e por isso obstacularizam aos oprimidos pensar. E, pensar por si mesmo é imprescindível para que alguém seja autônomo.
Quanto mais autoritária for a sociedade, mais frequente é o autoritarismo dos pais e dos mestres, e mais esse autoritarismo será introjetado nos filhos e alunos. Com isso, cria-se uma cultura de acatar irrefletidamente os preceitos verticalmente estabelecidos, apenas obedecer sem pensar. E isso é impossibilitador da autonomia, já que ela pressupõe que o sujeito possa pensar por si mesmo e para tal, as relações devem ser dialógicas, não autoritárias.
- A Educação Bancária e a Oposição Professor/Aluno
Exemplo de educação antidialógica é a “concepção bancária da educação”, a qual mantém a contradição entre educador-educando.
A conceção bancária distingue a ação do educador em dois momentos, o primeiro o educador em sua biblioteca adquire os conhecimentos, e no segundo em frente aos educandos narra o resultado de suas pesquisas, cabendo a estes apenas arquivar o que ouviram ou copiaram. Nesse caso não há conhecimento, os educandos não são chamados a conhecer, apenas memorizam mecanicamente, recebem de outro algo pronto. Assim, de forma vertical e antidialógica, a conceção bancária de ensino “educa” para a passividade, para a acriticidade, e por isso é oposta à educação que pretenda educar para a autonomia.
Freire denuncia que a narração e a dissertação são características marcantes da educação bancária. “Narração ou dissertação que implica num sujeito – o narrador – e em objetos pacientes, ouvintes – os educandos”.
Mantendo a contradição entre educador e educando, a narração não promove a educação: “narração de conteúdos que, por isto mesmo, tendem a petrificar-se ou a fazer-se algo quase morto”. Essa educação apresenta retalhos da realidade de forma estática, sem levar em conta a experiência do educando. “Desta maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos são os depositários e o educador o depositante”. Por isso, Freire a chama de conceção “bancária da educação”, em que cabe ao educando apenas ser depósito, arquivar informações.
Mas, como nos fala Freire, “os grandes arquivados são os homens”, na medida em que essa educação sem práxis nega a criatividade, não há transformação, não há saber, os homens não podem tornar-se autônomos. A visão bancária possui papéis rigidamente definidos, o educador é o sábio que possui o conhecimento enquanto o educando é sempre aquele que não sabe. Em resumo, o educador é que educa, sabe, pensa, diz a palavra, disciplina, opta e prescreve a opção, atua, escolhe o conteúdo programático, identifica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, e finalmente, é o sujeito do processo. Os educandos, ao contrário, são educados, não sabem, são pensados, escutam docilmente, são disciplinados, seguem a prescrição, têm papel passivo, não são ouvidos, devem adaptar-se às determinações do educador, e são meros objetos.
Por isso, nessa visão distorcida de educação os homens são seres de adaptação e ajustamento.
O problema é que quanto mais são tratados como depósitos, menos serão capazes de consciência crítica e de libertarem-se da situação de opressão. Essa educação autoritária inibe a capacidade de perguntar, poda a curiosidade, gera um homem passivo, ingênuo, que não é capaz de um pensar autêntico. Assim, há a aceitação passiva das estruturas que tornam os homens seres para outro, heterônomos. Ela, em vez de transformar o homem em ser autônomo, de realizar sua vocação de Ser Mais, o torna autômato, o que é uma forma de heteronomia.
A educação bancária mantém a “inconciliação entre educador-educando” e também sugere uma “dicotomia inexistente homens-mundo”, na medida em que põe os homens como meros “espectadores e não recriadores do mundo”. Por isso, a educação bancária condiciona as pessoas para que se adaptem ao mundo, vivam nele aceitando a opressão sem se revoltar contra os patrões, os governantes, ou quem quer que possa os oprimir. Ou seja, para que trabalhem, cumpram as leis, sem questionar o próprio papel que ocupam na sociedade. Isso nega o homem como sujeito de suas ações e como ser de opção. Dessa forma, a educação bancária é educação como prática da dominação, mantém o educando na ingenuidade e assim, ele se acomoda ao mundo de opressão, permanecendo na heteronomia.
Ainda, a educação bancária com a pura transferência de conteúdos, a não participação do educando na produção do conhecimento, é um dos elementos responsáveis pela desmotivação, pela falta de interesse em estudar o que é “passado” em sala de aula.
- Neoliberalismo e a Ética de Mercado
As concepções de Paulo Freire me levam a pensar que hoje o neoliberalismo é algo que nega a autonomia, na medida em que promove uma crescente desigualdade social e, dessa forma, deixa a maioria das pessoas e nações em condições econômicas de pobreza. Situações de pobreza e miséria limitam a autonomia na medida em que restringem o poder de realizar.
Ainda, a ideologia neoliberal amacia a verdadeira realidade, promove modos de pensar massificados, o que nega a liberdade de cada qual pensar por si mesmo, negando assim, a autonomia. Paulo Freire dá alguns exemplos desse amaciamento ideológico: o desemprego que é considerado pelos neoliberais uma desgraça da época, o pragmatismo pedagógico que treina em vez de formar afirmando que os sonhos morreram e o importante é preparar para o mercado de trabalho, etc.
“O discurso da globalização que fala da ética esconde, porém, que a sua ética é a ética do mercado e não a ética universal do ser humano, pela qual devemos lutar bravamente se optamos, na verdade, por um mundo de gente”.
Paulo Freire identifica uma “ditadura do mercado” que impõe uma ética do lucro, bem diversa da ética universal defendida por ele.
“A liberdade de comércio não pode estar acima da liberdade do ser humano”.
Para que tenhamos um homem autônomo, a liberdade e a dignidade humana não podem ser desrespeitadas ou esquecidas em favor dos interesses de grupos econômicos.
Para Freire, a perspetiva neoliberal procura reforçar a “pseudo-neutralidade da prática educativa, reduzindo-a a transferência de conteúdos”, reduzindo a formação ao treino de técnicas e procedimentos.
Ainda, a educação de caráter neoliberal procura promover o individualismo com um discurso que incentiva os alunos a subir na vida por si mesmos, a terem sucesso material e profissional, e assim ensina as pessoas a desistirem de seus direitos à autonomia e pensamento crítico. É o discurso da educação para a ética do mercado: bom é o mais forte. Essas conceções educacionais neoliberais mantêm e agravam uma situação social que nega a dignidade e limita a autonomia de grande parte da população mundial.
A EDUCAÇÃO PARA A AUTONOMIA em Paulo Freire
Paulo Freire propõe uma pedagogia da autonomia na medida em que sua proposta está “fundada na ética, no respeito à dignidade e à própria autonomia do educando”.
- Inclusão do Ser Humano e a Autonomia
A concepção de educação de Freire está fundada no caráter inconcluso do ser humano. O homem não nasce homem, ele se forma homem pela educação. Por isso educação é formação. Esse processo de formação perdura ao longo da vida toda, o homem não pára de educar-se, sua formação é permanente e se funda na dialética entre teoria e prática.
O homem é inacabado e possui consciência de seu inacabamento, isso é importante para que ele se torne autônomo. Segundo Freire, com a liberdade o ser humano foi transformando a vida em existência e o suporte em mundo.
Para Freire, a experiência animal se dá no suporte, que é espaço restrito em que o animal é treinado, adestrado para caçar, defender-se, sobreviver, e é graças a esse suporte que os filhotes dependem de seus pais por menos tempo que as crianças. A explicação do comportamento animal se encontra muito mais na espécie do que no indivíduo. Eles não possuem liberdade, assim não criam um mundo para si, não são autônomos.
Já o homem possui existência.
“O domínio da existência é o domínio do trabalho, da cultura, da história, dos valores – domínio em que os seres humanos experimentam a dialética entre determinação e liberdade”.
É no domínio da existência que os homens se fazem autônomos. A partir da invenção da existência não foi mais possível ao homem existir sem assumir o seu direito e dever de decidir. Por isso, assumir a existência em sua totalidade é necessário para que o homem seja autônomo.
Enquanto inacabados, homens e mulheres se sabem condicionados, mas a consciência mostra a possibilidade de ir além, de não ficar determinados. “Significa reconhecer que somos condicionados mas não determinados”.
A construção da própria presença no mundo não se faz independente das forças sociais, mas se essa construção for determinada, não há autonomia. Se minha presença no mundo é feita por algo alheio a mim, estou abrindo mão de minha liberdade, de minha responsabilidade ética, histórica, política e social, estou abrindo mão de minha autonomia.
“Afinal, minha presença no mundo não é a de quem apenas se adapta, mas a de quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto, mas sujeito também da História”.
- Educar é Formar: Imprescindibidade da Ética e Estética
Para Freire, educar é substantivamente formar, por isso o ensino dos conteúdos não pode se dar alheio à formação moral e estética do educando.
Um ensino tecnicista, que visa apenas o treinamento, diminui o que há de fundamentalmente humano na educação, o seu caráter formador.
Uma educação que vise formar para a autonomia deve incluir a formação ética e, ao seu lado, a formação estética. “Decência e boniteza de mãos dadas”. Homens e mulheres, enquanto seres histórico-sociais, se fazem capazes de comparar, julgar, valorar, escolher, intervir, recriar, dessa forma são responsáveis e se fazem seres éticos e estéticos.
Para Paulo Freire, só podemos ser autônomos graças a nossa liberdade, por isso uma educação que vise formar para a autonomia engloba necessariamente a dimensão ética e estética.
Uma das dimensões éticas que uma educação que busca formar para a autonomia deve atentar é a corporeificação da palavra pelo exemplo do educador. De nada adianta um professor em seu discurso exaltar a criticidade, a democracia, o pensamento autônomo, se sua prática é antidialógica, vertical, bancária.
A educação para a autonomia supõe o respeito às diferenças, assim, rejeita qualquer forma de discriminação, seja ela de raça, classe, gênero, etc. Como a autonomia não é auto-suficiência, ela inclui estar aberto à comunicação com o outro, com o diferente, e estar aberto à comunicação com o outro, segundo Freire, é pensar certo.
De acordo com o pensamento de Freire, para a prática de uma educação que visa a autonomia, uma das tarefas mais importantes é possibilitar condições para que os educandos possam “assumir-se”.
Outro ponto essencial ao se pretender uma educação para a autonomia, é a questão ética do respeito aos professores. É direito e dever dos educadores lutar por sua valorização, e isso inclui lutar por salários dignos, menos imorais.
“A elevação urgente da qualidade de nossa educação passa pelo respeito aos educadores e educadoras mediante substantiva melhora de seus salários, pela sua formação permanente e reformulação dos cursos de magistério”.
- Autoridade e Liberdade
O educador, que em sua prática busca promover a autonomia dos educandos, deve estar atento à relação autoridade-liberdade. Para que haja a necessária disciplina sem haver autoritarismo ou licenciosidade, o equilíbrio entre ambas é necessário.
“O autoritarismo é a rutura em favor da autoridade contra a liberdade e a licenciosidade, a rutura em favor da liberdade contra a autoridade”.
Assim o autoritarismo não é mais autoridade, mas abuso de autoridade, a licenciosidade não é mais liberdade, mas depravação da liberdade.
Já a licenciosidade impede a aprendizagem da auto-responsabilização e permite que o educando se torne dependente dos próprios impulsos e desejos.
Ambos são nocivos à autonomia, já que o autoritarismo mantém o educando excessivamente dependente da autoridade e poda a liberdade de escolher e fazer por si mesmo.
Tanto a dependência excessiva da autoridade externa quanto a dependência dos próprios impulsos são formas de heteronomias, pois impedem que o sujeito haja de acordo com sua própria lei, impedem que o sujeito seja ele mesmo.
Para Freire, a autoridade docente precisa estar fundada na autoridade da competência, não que a competência técnica na área em que atua seja suficiente para garantir a autoridade, mas a incompetência profissional a desqualifica. A autoridade está relacionada com promover, incentivar, por isso demanda generosidade.
Relações justas e generosas geram um clima em que a autoridade do professor e a liberdade do aluno se assumem em sua eticidade.
A autoridade não pode cair no autoritarismo, caso em que educará para a servilidade, que é uma forma de heteronomia.
A autoridade que é democrática se preocupa com a construção de um clima de real disciplina, de respeito. Procura levar o educando a construir, por meio de sua liberdade e fundado na responsabilidade, a autonomia.
Dessa forma, a escola deve ter conteúdos programáticos, mas deve ficar claro que o essencial na aprendizagem dos conteúdos é a “construção da responsabilidade da liberdade que se assume [...] é a reinvenção do ser humano no aprendizado de sua autonomia”.
Segundo Freire, na constituição da necessária disciplina não há como identificar o ato de estudar, de aprender, de conhecer, de ensinar, com o puro entretenimento. A prática educativa é difícil, é exigente, não pode ter “regras frouxas”, no entanto, também não pode ser um ato insosso, desgostoso, enfadonho, deve ser prazeroso. Há alegria embutida na aventura de conhecer, de descobrir, sem a qual o ato educativo pode se tornar desmotivador.
É a postura ativa, criativa, crítica, necessária para a construção da autonomia, que a disciplina típica da educação bancária abafa e a disciplina respeitosa da educação dialógica.
O melhor para a promoção da autonomia, é que a liberdade possa se constituir assumindo seus limites criticamente. O confronto com as demais liberdades e com a autoridade dos pais, professores, do Estado, é bom e necessário, pois amadurece a liberdade, ela descobre que não é absoluta, mas é cerceada por outras liberdades e pela autoridade, e sua autonomia não é absoluta ou auto-suficiente. Por isso é indispensável que os pais tomem parte nas discussões sobre as decisões dos filhos, o que não pode é tomar a decisão por eles, mas devem mostrar que a decisão é um processo responsável e acarreta em consequências.
A autonomia é conquistada gradualmente, é processo que consiste no amadurecimento do ser para si, por isso a educação deve possibilitar experiências que estimulem as decisões e a responsabilidade. Freire fala que mais importante do que o testemunho espontâneo dos pais é aproveitar a força do testemunho de pai para exercitar a “liberdade do filho no sentido da gestação de sua autonomia”. Segundo o autor, quanto mais os filhos vão se tornando “seres para si”, tanto mais são capazes de reinventar seus pais, em vez de copiá-los ou até negá-los.
O educador que busca criar condições para que seus alunos criem sua própria autonomia e que não quer ter uma prática autoritária, deve saber escutar. Falar para os alunos como se fosse o portador da verdade é uma prática bancária, é preciso escutar, e a partir da escuta aprender a falar com eles e não para eles.
De acordo com Freire, para que haja uma comunicação dialógica, que não seja nem licenciosa nem autoritária, é indispensável, em sala de aula, a disciplina do silêncio.
- Curiosidade, Criticidade e a Autonomia
A educação que vise formar para a autonomia deve fomentar nos educandos a curiosidade e a criticidade.
Um educador que busca despertar a curiosidade e a criticidade em seus educandos, não pode basear-se na memorização mecânica. Pensar mecanicamente é pensar errado.
“Pensar certo significa procurar descobrir e entender o que se acha mais escondido nas coisas e nos fatos que nós observamos e analisamos”.
Paulo Freire defende a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, pois faz parte da natureza da prática docente indagar, buscar, pesquisar. A pesquisa possibilita conhecer a novidade e contribui para que a curiosidade vá se tornando cada vez, metodicamente, mais rigorosa, e assim saia da ingenuidade e transforme-se em curiosidade epistemológica. O conhecimento sempre começa pela pergunta, pela curiosidade
A partir das conceções de Freire a educação envolve o movimento dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer.
Práticas espontâneas produzem geralmente um saber ingênuo.
O conhecimento crítico, necessário para a autonomia, se alcança com rigorosidade metódica.
- Consciencialização e Educação Dialógica
Em Freire, a construção da autonomia passa pela conscientização, ele propõe a conscientização como um esforço de “conhecimento crítico dos obstáculos” que impedem a transformação do mundo, que impedem a superação das condições de heteronomia.
A conscientização exige que ultrapassemos a esfera da espontaneidade, que substituamos a consciência ingênua pela consciência crítica.
É na práxis do distanciamento/aproximação que o mundo é problematizado, decodificado, que os seres humanos se descobrem instauradores do próprio mundo, descobrem que não apenas vivem, também existem. A consciência do mundo e consciência de si crescem juntas. “Mas ninguém se conscientiza separadamente dos demais. A consciência se constitui como consciência do mundo”. Não há um mundo para cada consciência, elas se desenvolvem em um mundo comum a elas, se desenvolvem essencialmente comunicantes, por isso se comunicam.
Para Freire, é a partir da reflexão sobre seu contexto, do comprometimento, das decisões, que os homens e mulheres se constroem a si mesmos e chegam a ser sujeitos, chegam a ser autônomos.
A proposta de Freire é de uma educação problematizadora, dialógica, oposta à educação bancária, por isso não trata os alunos como depósitos de conteúdos, busca promover caminhos para que o próprio aluno seja sujeito e construa sua autonomia.
“Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”.
- Educar para Transformar
Para Freire , é uma contradição um ser consciente de seu inacabamento não buscar o futuro com esperança, não sonhar com a transformação, enfim, não buscar a construção de um mundo onde todos possam realizar-se com autonomia.
Cabe à educação problematizar o futuro para que a utopia de um mundo melhor não se perca.
Ao se reconhecer a possibilidade e manter vivo o sonho, o papel histórico da subjetividade, de transformar, recriar o mundo, adquire papel relevante.
Dizer que a educação vai suprimir todas as injustiças, opressões, e assim mudar completamente a sociedade suprimindo todas heteronomias, é ingenuidade, da mesma forma que dizer que a educação não pode realizar mudança alguma. Temos que estar conscientes do nosso condicionamento, mas não somos determinados, há possibilidade da transformação.
“A compreensão da história como possibilidade e não determinismo,..., seria ininteligível sem o sonho, assim como a conceção determinista se sente incompatível com ele e, por isso, o nega”.
Uma educação que busca formar para a autonomia deve estar preocupada com a transformação de condições tais como a indigência, a pobreza, a insuficiência de recursos materiais, que limitam a autonomia. Essa transformação tem caráter político, por isso a educação está vinculada indissociavelmente com a política.
Para que as condições concretas que limitam a autonomia sejam transformadas, é preciso reinventar o mundo de hoje e a educação é indispensável nessa reinvenção. Essa reinvenção do mundo exige comprometimento. Da mesma forma que não é possível entrar na chuva sem se molhar, não é possível educar sem revelar a própria maneira de ser, de pensar politicamente. Por isso a importância da coerência entre o que se diz e o que se faz. Freire nos diz que o professor não pode ser um sujeito de omissão, mas de opções.
Transcrição de partes de trabalho elaborado por:
Moacir Gadotti
A Escola como um lugar especial
A escola é um lugar bonito, um lugar cheio de vida, seja ela uma escola com todas as condições de trabalho, seja ela uma escola onde falta tudo, e um espaço de relações.
Como instituição social ela tem contribuído tanto para a manutenção quanto para a transformação social. Numa visão transformadora ela tem um papel essencialmente crítico e criativo.
A escola não é só um lugar para estudar, mas para se encontrar, conversar, confrontar-se com o outro, discutir, fazer política. Deve gerar insatisfação com o já dito, o já sabido, o já estabelecido. Só é harmoniosa a escola autoritária. A escola não é só um espaço físico. É, acima de tudo, um modo de ser, de ver. Ela se define pelas relações sociais que desenvolve.
A escola não pode mudar tudo e nem pode mudar a si mesma sozinha. Ela está intimamente ligada à sociedade que a mantém. Ela é, ao mesmo tempo, fator e produto da sociedade.
Não somos seres determinados, mas, como seres inconclusos, inacabados e incompletos, somos seres condicionados.
O que aprendemos depende das condições de aprendizagem. Somos programados para aprender, mas o que aprendemos depende do tipo de comunidade de aprendizagem a que pertencemos.
A primeira comunidade de aprendizagem a que pertencemos é a família, o grupo social da infância. A escola, como segunda comunidade de aprendizagem da criança, precisa levar em conta a comunidade não-escolar dos aprendentes. E mais: todos precisamos de tempo para aprender, na escola, na família, na cidade.
Quando os pais, mães, ou outros responsáveis, acompanham a vida escolar de seus filhos, aumentam as chances da criança aprender. Os pais precisam também continuar aprendendo. Se qualidade de ensino é aluno aprendendo, é preciso que ele saiba disso: é preciso “combinar” com ele, envolvê-lo como protagonista de qualquer mudança educacional.
O aluno aprende quando o professor aprende; ambos aprendem quando pesquisam. Como diz Paulo Freire:
“Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino … Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade”.
Vivemos hoje numa sociedade de redes e de movimentos, uma sociedade de múltiplas oportunidades de aprendizagem, chamada de “sociedade aprendente”, na qual as conseqüências para a escola, para o professor e para a educação em geral são enormes. Torna-se fundamental aprender a pensar autonomamente, saber comunicar-se, saber pesquisar, saber fazer, ter raciocínio lógico, aprender a trabalhar colaborativamente, fazer sínteses e elaborações teóricas, saber organizar o próprio trabalho, ter disciplina, ser sujeito da construção do conhecimento, estar aberto a novas aprendizagens, conhecer as fontes de informação, saber articular o conhecimento com a prática e com outros saberes.
Nesse contexto de impregnação da informação, o professor é muito mais um mediador do conhecimento, um problematizador. O aluno precisa construir e reconstruir o conhecimento a partir do que faz. Para isso, o professor também precisa ser curioso, buscar sentido para o que faz e apontar novos sentidos para o que-fazer dos seus alunos. Ele deixará de ser um lecionador para ser um organizador do conhecimento e da aprendizagem. Poderíamos dizer que o professor se tornou um aprendiz permanente, um construtor de sentidos, um cooperador, e, sobretudo, um organizador da aprendizagem. Não há ensino-e-aprendizagem fora da “procura, da boniteza e da alegria”, dizia-nos Paulo Freire. A estética não está separada da ética. E elas se farão presentes quando houver prazer e sentido no conhecimento que construímos. Por isso, precisamos também saber o que, por que, para que estamos aprendendo.
Ninguém nega a importância da Educação Básica para a formação da cidadania e como forma de se preparar para o trabalho. A Educação Básica é consequência de um longo processo de compreensão/realização do que é essencial, do que é permanente, e do que é transitório para que um cidadão exerça criticamente a sua cidadania e construa um projeto de vida, considerando as dimensões individual e coletiva, para viver bem em sociedade.
A utopia como tema da épocal freireno
As passagens mais bonitas das obras de Paulo Freire são as que ele escreveu sobre o sonho e a utopia.
A leitura de Paulo Freire deveria começar sempre por essa porta de entrada, a porta da utopia. A utopia é o que ele chamaria de um tema “epocal”. Para ele, epocal é o tema que sintetiza uma preocupação ampla e convergente de toda uma época.
Em todos os seus livros, Paulo Freire nos fala alguma coisa sobre utopia e sonho.
No livro Pedagogia da tolerância, ele nos diz que o sonho dele era uma “sociedade menos feia, uma sociedade em que seja possível amar e ser amado”. Ele retoma o tema sempre acrescentando alguma ideia nova. E nos diz que “não é possível sonhar e realizar o sonho se não se comunga este sonho com as outras pessoas”.
Num outro livro, Pedagogia da indignação, escreve:
“Sem sonho e sem utopia, sem denúncia e sem anúncio, só resta o treinamento técnico a que a educação é reduzida”.
“O sonho de um mundo melhor nasce das entranhas do seu contrário. Por isso corremos o risco tanto de idealizarmos o mundo melhor, desgarrando-nos do nosso concreto, quanto de, demasiado ‘aderidos’ ao mundo concreto, submergirmo-nos no imobilismo fatalista”.
“A desproblematização do futuro, numa compreensão mecanicista da história, de direita ou de esquerda, leva necessariamente à morte ou à negação autoritária do sonho, da utopia, da esperança”.
Freire nos fala ainda de um pensamento profético como um pensamento utópico, um pensamento que “anuncia um mundo melhor” sem a soberba e a arrogância de quem pretende determinar a história. Ao contrário, o pensamento profético, diz ele:
“Implica a denúncia de como estamos vivendo e o anúncio de como poderíamos viver. É um pensamento esperançoso (...). Falando de como está sendo a realidade, denunciando-a, anuncia um mundo melhor (...) na real profecia, o futuro não é inexorável, é problemático. (...). Contra qualquer tipo de fatalismo, o discurso profético insiste no direito que tem o ser humano de comparecer à História não apenas como seu objeto, mas também como sujeito”.
Para Paulo Freire:
“A questão do sonho possível tem a ver exatamente com a educação libertadora, não com a educação domesticadora. … tem a ver com a educação libertadora enquanto prática utópica. … Utópico no sentido de que é esta uma prática que vive a unidade dialética, dinâmica, entre a denúncia e o anúncio, entre a denúncia de uma sociedade injusta e expoliadora e o anúncio do sonho possível de uma sociedade que pelo menos seja menos expoliadora…”.
“Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar”. O educador é um “realizador de sonhos”.
Para ele, o pensamento utópico liga-se muito à reflexão pedagógica na medida em que o educador, ao refletir sobre como sua ação opera mudanças, por meio de sua ação realiza, de fato, uma utopia. A educação como um instrumento eficaz de transformação é essencialmente utópica.
Furter adverte, porém, que, sendo a utopia ligada à imaginação, ela sempre será ambígua e que é preciso vê-la de maneira crítica. O educador pensa o futuro, está voltado para o futuro, mas sua ação cotidiana está totalmente engajada no presente. Sua ação, portanto, é uma ação contraditória. Por isso as relações entre o pensamento utópico e a ação pedagógica são complexas e dialéticas. É por isso, também, que a utopia pedagógica deve ser concreta, para não se tornar uma abstração delirante.
Pedagogia da luta, pedagogia da esperança
Paulo Freire escreveu para as pessoas que amava, por isso, tudo o que escrevia deveria pertencer àqueles para os quais ele o havia feito: os oprimidos.
Paulo nunca polemizou com ninguém. Mas também não deixava de responder.
“Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele.” (Pedagogia da autonomia, p.128).
Paulo não era indiferente a certas críticas, sobretudo as que vinham de rumores anônimos. Afirmava que os rumores são mais destrutivos do que as críticas abertas. Os rumores são covardes. Seus autores escondem-se atrás do anonimato e da maledicência.
Sua pedagogia não é apenas uma pedagogia para os pobres. Ele, como ser conectivo, queria ver também os não-pobres e as classes médias se engajando na transformação do mundo. Toda pedagogia contém uma proposta política, implícita ou explícita. O “método Paulo Freire” é um excelente exemplo disso: não faz sentido separar o seu método de uma visão de mundo.
Em todos os seus escritos, Freire nos fala das virtudes como exigências ou virtudes necessárias à prática educativa transformadora. Mas também nos deu exemplo dessas virtudes, entre elas, a tolerância e a coerência. Freire não foi coerente por teimosia. Para ele, a coerência era uma virtude que tomava a forma da esperança. Praticava sobretudo a virtude do exemplo: dava testemunho do que pensava. Nessa coerência entre teoria e prática, eu destacaria o valor da solidariedade.
Em 2004, Ana Maria Araújo Freire organizou um livro com diversos escritos de Paulo Freie com o título Pedagogia da tolerância. Nele, Freire nos fala da “tolerância autêntica” como a capacidade de conviver com os diferentes:
“Falo da tolerância como virtude de convivência humana. Falo, por isso mesmo, da qualidade básica a ser forjada por nós e aprendida pela assunção de sua significação ética – a qualidade de conviver com o diferente. Com o diferente – não com o inferior (...). O que a tolerância autêntica demanda de mim é que respeite o diferente, seus sonhos, suas idéias, suas opções, seus gostos, que não o negue só porque é diferente. O que a tolerância legítima termina por me ensinar é que, na sua experiência, aprendo com o diferente”.
Tolerância e solidariedade são vistas como duas faces da mesma moeda. A solidariedade não é apenas uma virtude; é condição de sobrevivência da espécie humana. A solidariedade não é uma qualidade do ser humano; é inerente à sua natureza. É o que o distingue dos outros animais.
Outra virtude que conquistou foi a simplicidade. O simples não é o fácil.
Paulo detestava o intelectual arrogante, sobretudo o intelectual arrogante de esquerda. Para ele, o intelectual de direita já era arrogante por natureza, mas o de esquerda o era por deformação.
“Estou convencido, porém, de que a rigorosidade, a séria disciplina intelectual, o exercício da curiosidade epistemológica não me fazem necessariamente um ser mal-amado, arrogante, cheio de mim mesmo. Ou, em outras palavras, não é a minha arrogância intelectual a que fala de minha rigorosidade científica. Nem a arrogância é sinal de competência nem a competência é causa da arrogância. Não nego a competência, por outro lado, de certos arrogantes, mas lamento neles a ausência de simplicidade que, não diminuindo em nada seu saber, os faria gente melhor. Gente mais gente”.
A relação entre luta e esperança é particularmente desenvolvida por Paulo Freire em seu livro Pedagogia da esperança (1992). Esperança na luta: a esperança sem a luta é ingenuidade e a luta sem a esperança é “frívola ilusão”, diz ele. Não nascemos esperançosos. Por isso precisamos de uma educação para a esperança e uma pedagogia da esperança. É o que ele defendeu numa expressiva passagem de seu livro Pedagogia da esperança:
“Pensar que a esperança sozinha transforma o mundo e atuar movido por tal ingenuidade é um modo excelente de tombar na desesperança, no pessimismo, no fatalismo. Mas prescindir da esperança na luta para melhorar o mundo, como se a luta se pudesse reduzir a atos calculados apenas, a pura cientificidade, é frívola ilusão. Prescindir da esperança que se funda também na verdade como na qualidade ética da luta é negar a ela um dos seus suportes fundamentais. O essencial, como digo mais no corpo desta Pedagogia da esperança, é que ela, enquanto necessidade ontológica, precisa de ancorar-se na prática. Enquanto necessidade ontológica, a esperança precisa da prática para tornar-se concretude histórica. É por isso que não há esperança na pura espera, nem tampouco se alcança o que se espera na espera pura, que vira, assim, espera vã. Sem um mínimo de esperança não podemos sequer começar o embate, mas, sem o embate, a esperança, como necessidade ontológica, se desendereça e se torna desesperança que, às vezes, se alonga em trágico desespero. Daí a precisão de uma certa educação da esperança. É que ela tem uma tal importância em nossa existência, individual e social, que não devemos experimentá-la de forma errada, deixando que ela resvale para a desesperança e o desespero. Desesperança e desespero, consequência e razão de ser da inação ou do imobilismo”.
É muito importante associar a pedagogia da esperança como conceção da educação, à pedagogia da luta. Essas pedagogias são inseparáveis no pensamento de Paulo Freire. Carlos Alberto Torres, um dos melhores estudiosos de Paulo Freire, afirma que luta e esperança são também inseparáveis de sua teoria do conhecimento e de sua conceção de educação.
Paulo Freire no livro Pedagogia da tolerância escreve:
“Para mim, o processo de aprender, o processo de ensinar são, antes de tudo, processos de produção de saber, de produção de conhecimento, e não de transferência de conhecimento”.
Para construir seu método de ensino, aprendizagem e pesquisa, Paulo Freire parte das necessidades populares e não de categorias abstratas, entrelaçando quatro momentos interdependentes:
1º – ler o mundo, o que implica o cultivo da curiosidade;
2º – compartilhar o mundo lido, o que implica o diálogo;
3º – a educação como ato de produção e de reconstrução do saber;
4º – a educação como prática da liberdade.
Para Paulo Freire, liberdade não é saber escolher, como defendem os neoliberais (Friedman, 1982). A liberdade é a capacidade de autodeterminar-se. Liberdade não é agir espontaneamente, mas agir de acordo com uma direção consciente.
A teoria e a práxis de Paulo Freire cruzaram as fronteiras das disciplinas, das ciências e dos espaços geográficos. O seu pensamento é considerado um exemplo de transdisciplinaridade.
Algumas teses freireanas
1ª – A interdisciplinaridade freireana n ão é apenas um método pedagógico ou uma atitude do professor: é uma exigência da própria natureza do ato pedagógico.
2ª – Os temas desenvolvidos por Paulo Freire nas suas últimas obras sugerem a emergência de uma pedagogia do desenvolvimento sustentável ou ecopedagogia.
3ª – Paulo Freire considera necessária a politicidade do processo pedagógico uma vez que os problemas educacionais não são apenas técnicos nem apenas pedagógicos: são também políticos e econômicos.
4ª – Paulo Freire nos indica qual é o papel dos educadores na reinvenção do poder: reinventar a educação reinventando a política.
5ª – Segundo a educadora Célia Frazão Linhares, o pensamento de Paulo Freire é polifônico. Sua obra é capaz de gerar múltiplas leituras. Sua fala e sua escrita geraram diferentes interpretações em diferentes lugares. O pensamento de Freire representa a afirmação da polifonia contra os controladores de uma voz única.
6ª – Paulo Freire não se preocupou só com os métodos de alfabetização, não se preocupou só com o desenvolvimento da língua escrita nos adultos. Entre outros temas, ele se preocupou com as relações entre professor e aluno e com a formação para a consciência crítica.
“É preciso que, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É nesse sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos, nem formar é a ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (Pedagogia da autonomia, pág. 25).
6ª – Paulo Freire considerou que a escola deve ser o canal do resgate científico de expressão da cultura popular. A escola pública deve ser o espaço de organização das reflexões sobre as determinações sociais. Essa escola deve ter uma função insurrecional, ou seja, deve se constituir num espaço de organização política das classes populares e instrumento de luta contra-hegemônica.
7ª – Paulo Freire parece ter compreendido desde muito cedo que as universidades, com seu academicismo, com suas lutas internas pelo poder e controle do conhecimento, revelam-se, com frequência, como espaços estreitados, onde o pensamento criador enfrenta sérios problemas.
8ª – Paulo Freire nos ensinou a olhar para o caos cotidiano e enxergar nele a utopia, a não perder a esperança diante das dificuldades. O educador precisa ser profeta.
9ª – O construtivismo crítico freireano é simples de entender e difícil de praticar, pois exige mudanças não só individuais, mas também sociais.
10ª – A pedagogia do oprimido é tanto uma crítica à pedagogia tradicional, centrada no professor, quanto ao movimento da Escola Nova, que descura da politicidade da educação. Por isso é errôneo chamar Paulo Freire de “escolanovista popular”.
11ª – A utopia é o verdadeiro realismo do devir humano. Isso significa que para ser realista em educação, o educador precisa ser utópico: a utopia representa um impulso para se colocar a caminho para além do dado histórico. Ela se torna desafio e estímulo.
Para Pauli Freire, a educação não pode tudo; há limites da prática educativa.
“Não há prática educativa, como de resto nenhuma prática, que escape a limites. Limites ideológicos, epistemológicos, políticos, econômicos, culturais. (...). Creio que a melhor afirmação para definir o alcance da prática educativa em face dos limites a que se submete é a seguinte: não podendo tudo, a prática educativa pode alguma coisa. (...). Esta afirmação recusa, de um lado, o otimismo ingênuo que tem na educação a chave das transformações sociais, a solução para todos os problemas; de outro, o pessimismo igualmente acrítico e mecanicista de acordo com o qual a educação, enquanto supra-estrutura, só pode algo depois das transformações infra-estruturais” (Freire, 1993, p.96).
No livro mais conhecido de Paulo Freire, Pedagogia do oprimido, ele defende uma tese original: a superação da situação de oprimido não pode dar-se simplesmente quando o oprimido assumir a posição de opressor. A superação da contradição oprimido-opressor não implica em que os oprimidos se tornem opressores, mas a supressão da condição de opressão.
Freire nos adverte que o oprimido precisa conscientizar-se e engajar-se na luta.
“O homem não pode participar ativamente na história, na sociedade, na transformação da realidade se não for ajudado a tomar consciência da realidade e da sua própria capacidade para transformar (...). Ninguém luta contra forças que não entende, cuja importância não meça, cujas formas e contornos não discirna; (...) Isto é verdade se se refere às forças da natureza (...) isto também é assim nas forças sociais (...). A realidade não pode ser modificada senão quando o homem descobre que é modificável e que ele o pode fazer” (Freire, 1977, p.48).
Paulo Freire e a formação do professor
A formação do professor foi uma preocupação constante em Paulo Freire, manifestada em suas numerosas obras.
Reafirma a necessária profissionalização da docência contra a desvalorização dessa profissão.
Para Paulo Freire, o sonho de mudança não se consolida nas sociedades sem a presença do professor. Diz ele:
“A educação não é a alavanca da transformação social, mas sem ela essa transformação não se dá. Nenhuma nação se afirma fora dessa louca paixão pelo conhecimento, sem que se aventure, plena de emoção, na reinvenção constante de si mesma, sem que se arrisque criadoramente. Nenhuma sociedade se afirma sem o aprimoramento de sua cultura, da ciência, da pesquisa, da tecnologia, do ensino. E tudo isso começa com uma pré-escola” (Freire, 1993a, p.53).
Em seu maravilhoso livro Paulo Freire: O menino que lia o mundo – uma história de pessoas, de letras e de palavras, ele afirma:
“O bom de se aprender a ler-o-mundo em que se vive é que, aos poucos, os nossos medos vão desaparecendo. Pois a gente só tem medo mesmo é do que não entende” (Brandão, 2005, p.18).
Em Medo e ousadia Paulo Freire e Ira Shor afirmam que a educação libertadora se constitui num estímulo para as pessoas se mobilizarem, se organizarem e se “empoderarem” (eles utilizam o termo inglês empowernment). Ambos criticam o “currículo oficial”, pois entendem que ele implica a falta de confiança na capacidade dos estudantes e dos professores, negando-lhes o exercício da criatividade. Freire defende, na ação educadora, o rigor e não a rigidez, o direito do professor tomar a palavra, mas não o direito de entediar seus alunos com sua fala.
No livro Por uma pedagogia da pergunta Paulo Freire e Antonio Faundez defendem a diretividade da prática educativa:
“Se nada temos a propor ou se simplesmente nos recusamos a fazê-lo, não temos o que fazer verdadeiramente na prática educativa. A questão que se coloca está na compreensão pedagógico-democrática do ato de propor. O educador não pode negar-se a propor, não pode também recusar-se à discussão, em torno do que propõe, por parte do educando (Freire e Faundez, 1985, p.45).
Nesse livro, eles ainda falam da necessidade da escola ter um projeto político-pedagógico afirmando que “o ponto de partida de um projeto político-pedagógico tem de estar exatamente nos níveis de aspiração, nos níveis de sonho, nos níveis de compreensão da realidade e nas formas de ação e de luta dos grupos populares”.
O livro mais importante de Paulo Freire sobre o professor e sua formação é Pedagogia da autonomia, onde mostra o quanto a formação do professor é importante para qualquer mudança educacional, sobretudo para a melhoria da qualidade do ensino.
EDUCAÇÃO ROMÂNTICA
Transcrição de partes do trabalho elaborado por:
Iuri Andréas Reblin - Escola Superior de Teologia
Educação: educador em extinção
Para Rubem Alves, os educadores estão em via de extinção, ultrapassados pela funcionalidade frenética do mundo contemporâneo. Em seu lugar, surgiram os professores, ao serviço da lógica de mercado, cuja meta é a utilidade e a produção, no qual os alunos são máquinas a serem programadas e a serem definidas pelas suas habilidades: “a identidade é engolida pela função”.
Professores, há aos milhares. Mas professor é profissão, não é algo que se define por dentro, por amor. Educador, ao contrário, não é profissão; é vocação. E toda vocação nasce de um grande amor, de uma grande esperança”.
Educação: dilema entre utilidade e inutilidade
A educação não deve atrofiar-se no princípio da utilidade social do saber, negando ou minimizando o corpo das crianças – isto é, suas aspirações, interesses – e o estímulo da sabedoria, a vinculação do conhecimento com a vida. O conhecimento precisa estar vinculado à vida do educando. E, na infância, isso significa deixar a criança ser criança, sem projetar nela o adulto que ela deve ser, ou incutir e projetar sonhos dos adultos, visando o bem funcional da sociedade. Educar é despertar a sensibilidade artística, o espírito comunitário, valorizar a diversidade e relativizar o status elevado atribuído à pureza da ciência.
“Há muitas escolas que não passam de jacarés. Devoram as crianças em nome de rigor, de ensino apertado, de boa base, de preparo para o vestibular. É com essa propaganda que elas convencem os pais e cobram mais caro...”.
“Escolas jacarés, que as crianças têm de frequentar, e quando começam a demonstrar sinais de pavor frente ao bicho, tratam logo de dizer que o bicho vai muito bem muito obrigado, que é a criança que está tendo problemas, um foco cerebral com certeza, neurologista, psicólogo, psicanalista, e os pais vão, de angústia em angústia, gastando dinheiro, querendo o melhor para o filho...”.
A tarefa da educação é conduzir à liberdade; mais que isso, ela precisa acontecer simultaneamente à liberdade desejada. Para que os educandos possam avaliar o que lhes é ensinado e pôr esse saber em diálogo com sua vida e em função da busca de soluções para seus próprios problemas, é necessário que eles possam pensar por si mesmos.
“A escola tradicional, mesmo aquela supostamente modernizada, ainda não se deu conta de que sua função primordial é ensinar o aluno a pensar e a descobrir onde ele pode encontrar a resposta para as perguntas que ele tem”.
Educação: exercício da liberdade
Para que os educandos aprendam a pensar, a escola precisa ser um ambiente amigável, instigar a curiosidade e o interesse dos alunos. As crianças têm que sentir prazer em descobrir o mundo a sua volta. Elas precisam ser estimuladas a imaginar, a criar. Educar é buscar uma visão do todo; não apenas o intelecto, mas também a sensibilidade e os sentidos.
Considerações sobre Interdisciplinaridade
A ciência nada mais é que uma progressão do senso comum e que este, por sua vez, é antes uma expressão criada por aqueles que dominam e intentam dominar hierarquicamente o saber.
“Imagine um pianista que resolva especializar-se na técnica dos trinados apenas. O que vai acontecer é que ele será capaz de fazer trinados como ninguém – só que ele não será capaz de executar nenhuma música. Cientistas são como pianistas que resolveram especializar-se numa técnica só. Imagine as várias divisões da ciência – física, química, biologia, psicologia, sociologia – como técnicas especializadas. No início pensava-se que tais especializações produziriam, miraculosamente, uma sinfonia. Isso não ocorreu. O que ocorre, frequentemente, é que cada músico é surdo para o que os outros estão tocando. Físicos não entendem os sociólogos, que não sabem traduzir as afirmações dos biólogos, que por sua vez não compreendem a linguagem da economia, e assim por diante”.
“A especialização pode transformar-se numa perigosa fraqueza. Um animal que só desenvolvesse e especializasse os olhos se tornaria um gênio no mundo das cores e das formas, mas se tornaria incapaz de perceber o mundo dos sons e dos odores. E isso pode ser fatal para a sobrevivência”.
O problema não é a especialização do conhecimento em si, mas sim as consequências que o processo da especialização pode ocasionar. O desafio não é saber mais sobre um único tema ou objeto, mas a capacidade de reconhecer outros saberes como equitativos e de estabelecer um diálogo com eles, buscando uma visão holística.
“O senso comum e a ciência são expressões da mesma necessidade básica a necessidade de compreender o mundo, a fim de viver melhor e sobreviver”.
O acúmulo de saberes e a divisão entre mais ou menos importantes, entre categorias distintas (biologia, física, pedagogia) atrapalha a perceção de um todo.
“Ser bom em ciência, como ser bom no senso comum, não é saber soluções e respostas já dadas. [...] Ser bom em ciência e no senso comum é ser capaz de inventar soluções”.
É imprescindível que o conhecimento seja compreendido de forma integral e que vise, a partir da interação e da compartilha a criação de algo novo, em prol da qualidade de vida e da vida humana.
Por uma Educação Romântica
Há necessidade de que o currículo escolar seja determinado pela vida e pelos desafios que surgem ao ser humano ao se relacionar com o Umwelt – o mundo ao redor.
“O sujeito da educação é o corpo porque é nele que está a vida. É o corpo que quer aprender para poder viver. É ele que dá as ordens”.
O corpo não é entendido aqui meramente como uma unidade biológica, mas como uma unidade sóciocultural, ideológica, religiosa, psicológica, i.e., o ser humano em toda a sua integridade, partindo de sua existência e de sua realidade concreta, do seu Umwelt. Em outras palavras, o conteúdo escolar precisa ter um vínculo direto com o dia-a-dia, tem que ajudar a resolver problemas concretos (exemplo: ir para o supermercado praticar matemática), i.e., tem que ser útil e tem que abarcar o ser humano como um todo. Ou seja, não se trata apenas de ensinar técnicas, ciências exatas, mas igualmente a arte, a música, o teatro, etc.
Segundo Rubem Alves, a escola deve ser um ambiente que estimule a liberdade.
“Há escolas que são gaiolas. Há escolas que são asas. Escolas que são gaiolas existem para que os pássaros desaprendam a arte do voo. Pássaros engaiolados são pássaros sob controle. [...] Deixaram de ser pássaros. Porque a essência dos pássaros é o voo”.
“Escolas que são asas não amam pássaros engaiolados. O que elas amam são os pássaros em voo. Ensinar o voo, isso elas não podem fazer, porque o voo já nasce dentro dos pássaros. O voo não pode ser ensinado. Só pode ser encorajado”.
Diante dos desafios da realidade escolar (violência, desrespeito, medo de professores, os programas e avaliações predeterminados, etc.) Rubem Alves pergunta pela qualidade no ensino, apontando para a necessidade do vínculo entre saber e vida. E, nesse sentido, então, ele assevera:
“Nisso se resume o programa educacional do corpo: aprender “ferramentas”, aprender “brinquedos”.
“Ferramentas” são conhecimentos que nos permitem resolver os problemas vitais do dia-a-dia. “Brinquedos” são todas aquelas coisas que, não tendo nenhuma utilidade como ferramentas, dão prazer e alegria à alma”. [...] Ferramentas e brinquedos não são gaiolas. São asas. Ferramentas me permitem voar pelos caminhos do mundo. Brinquedos me permitem voar pelos caminhos da alma”.
Escolas enquanto asas refletem a educação como aquilo que vai impulsionar o ser humano, adultos, crianças, a ir além, a poder caminhar sozinho, pensar pensamentos próprios, buscar seus próprios sonhos, ao invés de ser uma simples engrenagem no sistema burocrático-mercantilista. A escola é aquele que ensina a “voar”. E voo se estimula ensinando a ver: ver o mundo que está ao redor; ver o assombro na natureza e ter a capacidade de se deixar surpreender-se, de maravilhar-se.
“O fato de gastarmos horas na contemplação das imagens banais e grosseiras da televisão e de não gastarmos nenhum tempo comparável na contemplação dos assombros da natureza é uma indicação do ponto a que a nossa cegueira chegou”.
A inteligência precisa ser despertada. E ela só desperta se aguçada pelo desconhecido e pela curiosidade. Se aquilo que o professor mostrar for monótono e chato, a inteligência continuará adormecida. O desconhecido e o curioso não são abstrações ou ideias ou aquilo que só é visto literalmente. A inteligência é despertada pelo toque.
“Na minha experiência, a inteligência começa com as mãos. As crianças não se satisfazem com o ver: elas querem pegar, virar, manipular, desmontar, montar”.
Para Rubem Alves
“Educação se faz com inteligência”.
“É um equívoco pensar que com mais verbas a educação ficará melhor que os alunos aprenderão mais, que os professores ficarão mais felizes”.
“É necessário quebrar os paradigmas desfasados que moldam o ensino no país. Educar não é programar, mas preparar pessoas para viver melhor. E viver melhor não significa portar todos os tipos de conhecimentos, mas ter a capacidade de pensar e, desse modo, ir além dos limites estreitos da repetição, da rotina, do jogo de perguntas e respostas programadas sem vínculo com o dia-adia, como se, igualmente, existisse uma alternativa única para cada problema. Portanto, além de ensinar a ver, educar consiste em ensinar a pensar e em ensinar a inventar”.
Rubem Alves ainda versa sobre a necessidade de educadores se disporem a aprender com as crianças e a necessidade de eles se envolverem com o que ensinam e de como ensinam.
“Eu penso a educação ao contrário. Não começo com os saberes. Começo com a criança. Não julgo as crianças em função dos saberes. Julgo os saberes em função das crianças. É isso que distingue um educador”.
Ao afirmar que não são as pessoas que devem estar em função dos saberes, mas que são justamente os saberes que devem estar a serviço das pessoas, Rubem Alves defende saberes e currículos flexíveis. Os modelos de ensino e os currículos devem estar abertos para aquilo que a criança tem vontade de saber ou para aquilo que vai alimentar sua curiosidade e despertar sua inteligência.
Ao vincular o saber com a realidade da criança e colocá-lo na perspetiva da criança e de seus interesses, o educador está instigando a criança ao pensamento e à imaginação. O pensamento e a imaginação não são fragmentados no dia-a-dia, pois eles lidam com a pluralidade de informações, escolhas, experiências que a criança está continuamente vivenciando. A ausência de contato do saber com a vida do aluno e o desvinculo do saber com a própria multiface que ele e os desafios e os problemas possuem desestimulam a aprendizagem e o interesse por determinados conhecimentos.
“Especialmente os adolescentes, movidos pela inteligência da contestação, perguntam sobre o sentido daquilo que têm de aprender. Frequentemente os professores não sabem dar respostas convincentes. “Para que aprender o uso dessa ferramenta complicadíssima se não sei para que serve e não vou usá-la?”. A única resposta é: “Tem de aprender porque cai no vestibular” – resposta que não convence por não ser inteligente mas simplesmente autoritária”.
Na direção do vínculo entre conhecimento e vida, está a interdisciplinaridade. Um dos desafios que Rubem Alves lança para a prática interdisciplinar é justamente a provocação a favor do próprio exercício da interdisciplinaridade na prática pedagógica.
Para Rubem Alves a interdisciplinaridade precisa estar incorporada já no Projeto Educativo (PE) da instituição, considerando que a educação visa, em primeira instância, preparar as pessoas para elas terem uma vida melhor. E viver melhor não significa dominar técnicas expoentes no mercado de trabalho atual, mas ter a capacidade de ver, pensar e inventar.
“Porque é com o pensamento que se faz um povo”.
Para Rubem Alves a interdisciplinaridade precisa ser exercida no dia-a-dia da vida escolar. Para Rubem Alves isso pode ocorrer a partir da educação da sensibilidade, do vínculo entre os saberes e entre os saberes e a vida da criança e do adolescente e do adulto.
A escola tem a tarefa de ajudar o aluno a encontrar a sua “caixa de ferramentas” e a sua “caixa de brinquedos”, conhecimentos de utilização e de fruição.
A interdisciplinaridade prima pela interconetividade dos saberes. Ao fazer isso, ela acaba desmantelando a hierarquia dos mesmos e colocando em xeque a absolutização de determinadas visões da realidade, defendendo a provisoriedade, a precariedade e a pluralidade do saber humano.
O ponto central do pensamento de Rubem Alves expresso em “Por uma educação romântica” se resume ao triângulo:
VER – PENSAR – INVENTAR.
O objetivo elementar da educação é a aprendizagem da arte de ver, da arte de pensar e da arte de inventar. Não se trata de apenas educar a sensibilidade do educando e educar o olhar ao mundo que o cerca. É preciso compreendê-lo.
“Compreender é ver o invisível”.
“Com a caixa de ferramentas e a caixa de brinquedos os seres humanos não só sobrevivem, mas sobrevivem com alegria. A caixa de ferramentas, sozinha, produz poder sem alegria. Vida forte mas vida boba, sem sentido. Os seres humanos ficam embrutecidos. O conhecimento, sozinho, é embrutecedor. A caixa de brinquedos, sozinha, está cheia de prazeres e alegrias. Mas os prazeres e alegrias, sozinhos, são fracos. E a vida, sem poder, é vida fraca, incapaz de responder aos desafios práticos da sobrevivência. E vem a morte. Sábio é aquele que possui as duas caixas... O homem sábio planta hortas – coisas boas para comer e viver – e planta jardins – coisas boas de ver, cheirar, degustar...”.
A caixa de ferramentas e a caixa de brinquedos, os conhecimentos científicos e os conhecimentos artísticos, os conhecimentos racionais e os conhecimentos emocionais, não necessariamente numa distinção muito nítida, funcionam pelo eixo:
VER – PENSAR – INVENTAR.
A visão, o pensamento e a imaginação precisam ser despertadas, para que o educando veja, pense e invente para além do comum, do rotineiro, do ordinário, do usualmente programável pelos sistemas padronizantes de ensino.
Ao considerar esse eixo triplo como base epistemológica e prática da educação, Rubem Alves põe a interdisciplinaridade (e até a transdisciplinaridade) no eixo motriz da educação enquanto área do saber e enquanto princípio social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Rubem Alves põe em xeque as antigas estruturas de pensamento e de ensino ao insistir num ensino flexível, vinculado à realidade do educando. Para Rubem Alves os saberes não são o centro das atenções, mas sim a vida, isso significa que o conhecimento deve atuar junto e a favor das necessidades concretas das crianças (ou dos educandos) – Prática pedagógica.
Rubem Alves propõe da interdisciplinaridade visando tornar as pessoas mais críticas e donas de uma visão ampla, plural do conhecimento, da sociedade, da realidade, da vida.
Apesar de incompleta, apresento uma descrição das principais ideologias e correntes de pensamento que, a meu ver, têm inspirado os principais partidos com assento na Assembleia da República Portuguesa.
Saliento a forte influência do capitalismo e dos ideais do liberalismo/Neoliberalismo no desenvolvimento do processo da globalização que em muito têm influenciado e condicionado as decisões dos governos por todo o mundo dada a dificuldade dos menos fortes, face à dependência económica, em manterem sua soberania (independência) e a autonomia na tomada de medidas congruentes com as ideologias que inspiraram a criação dos partidos e deveriam orientar os governantes.
SOCIAL DEMOCRACIA
Corrente ideológica que, partindo da crítica ao sistema capitalista e à necessidade de revisão do marxismo, ao negar nomeadamente a luta de classes, defendeu a construção do socialismo através de reformas graduais levadas a cabo por governos resultantes de processos eleitorais democráticos. Defende:
- a conjugação da defesa do pluralismo democrático e dos princípios da livre concorrência económica com o intervencionismo do Estado, cujo objetivo é o de regular a economia e promover o bem-estar dos cidadãos;
- a transição para uma sociedade socialista sem uma revolução, mas através de uma gradual reforma legislativa do sistema capitalista, tornando o capitalismo mais igualitário, de acordo com normas do sistema parlamentar e democrático, a fim de torná-lo mais igualitário;
- princípios como igualdade e justiça social, solidariedade e liberdade;
- a propriedade privada;
- o modelo capitalista, como necessário e positivo para o crescimento da economia, à angariação de impostos, considerando-o, no entanto, ineficiente na distribuição da riqueza produzida;
- o fomento da economia como condição à melhoria das condiçõs salariais e à redistribuição da riqueza gerada pelo capitalismo, traduzida em impostos, através de programas de assitência social;
- a economia de livre mercado ou liberalismo econômico onde o mercado está mais livre da intervenção estatal e da burocracia;
- as decisões sobre oferta, demanda, preço, distribuição e investimentos não são feitos pelo governo;
- os consenso entre empregadores e empregados (associações e sindicatos) subordinada à lógica do capital;
- o papel complementar e de regulação das forças do mercado na proteção do bem público;
- uma política centrada em reformas sociais caracterizadas por uma grande preocupação com as pessoas mais carentes ou desprotegidas e uma distribuição mais equitativa da riqueza.
DEMOCRACIA CRISTÃ
Pensamento, ideologia e movimento político que tem a sua origem na doutrina social da igreja que condena os excessos do liberalismo capitalista, atribuindo igualmente aos estados a missão de zelar pelo bem-comum. Defende:
- uma democracia baseada nos ensinamentos e princípios cristãos, tais como a liberdade, a solidariedade e a justiça;
- o combate ao Estado forte e centralizado. Por isso ela é regionalista e municipalista, apoiando a descentralização e a autonomia das províncias e dos concelhos;
- algumas ideias liberais: reformulação do capitalismo através de uma política defensora da justiça social e defesa dos direitos humanos, da liberdade e da iniciativa privada e individual;
- a solidariedade e a cooperação entre povos – é internacionalista;
- algumas ideias conservadoras; o desenvolvimento evolucionário e gradual da sociedade, a implementação da lei e da ordem, a rejeição do comunismo e a rejeição, em assuntos sociais, do aborto, da eutanásia e do casamento de pessoas de sexo igual;
- algumas ideias socialistas: a Previdência social, a intervenção do Estado na economia se for necessário, o apoio aos mais desfavorecidos, a dignificação do trabalho e a diminuição da pobreza;
- a redistribui da riqueza gerada pelo capitalismo, traduzida em impostos, através de programas de assitência social, principalmente via instituções – Estado-Providência.
Capitalismo
Sistema econômico que defende que:
- os meios de produção e distribuição são todos de propriedade privada e com fins lucrativos;
- o aumento de rendimento pretendido tanto pode ser concentrado como distribuido, dependendo das condições particulares de cada sociedade;
- as decisões sobre oferta, demanda, preço, distribuição e investimentos não são feitos pelo governo;
- distribuição dos lucros pelos proprietários que investem em empresas e os salários são pagos aos trabalhadores pelas empresas;
- o Estado/Governo existe para banir a iniciaçãoi de violência humana;
- o grande comércio e a grande indústria são controlados pelo poderio econômico dos bancos comerciais e por outras instituições financeiras - capitalismo financeiro.
Liberalismo
Ideologia política que defende:
- o Estado deve proporcionar aos cidadãos oportunidades a nível econômico, de saúde, de educação, etc. a liberdade de escolha, sem impôr – liberalismo social;
- a restrição do poder estatal, não permitindo que o Estado interfira em alguns direitos fundamentais como o direito à vida, à felicidade e à liberdade – liberalismo político;
- o comércio livre – liberalismo económico.
Neoliberalismo
Corrente de pensamento e ideologia política associada à globalização que defende:
- a não participação do estado na economia, onde deve haver total liberdade de comércio, para garantir o crescimento econômico e o desenvolvimento social de um país. afirmam que o estado é o principal responsável por anomalias no funcionamento do mercado livre, porque o seu grande tamanho e atividade constrangem os agentes econômicos privados;
- a pouca intervenção do governo no mercado de trabalho;
- a política de privatização de empresas estatais;
- a livre circulação de capitais internacionais e ênfase na globalização;
- a abertura da economia para a entrada de multinacionais;
- a adoção de medidas contra o protecionismo econômico;
- a diminuição dos impostos e tributos excessivos etc.;
- a redução dos custos e dos salários como uma forma essencial para melhorar a economia local e global.
- a independência da economia relativamente à política;
- que a educação vocacionada para o mercado de trabalho.
Socialismo
Doutrina política e económica ou uma linha de pensamento que defende:
- a transformação da sociedade através da distribuição equilibrada de riquezas e propriedades, diminuindo a distância entre ricos e pobres;
- uma mudança gradual da sociedade e um afastamento do capitalismo, considerando que o capitalismo concentra injustamente a riqueza e o poder nas mãos de um pequeno segmento da sociedade que controla o capital e deriva a sua riqueza através da exploração, criando uma sociedade desigual, que não oferece oportunidades iguais para todos a fim de maximizar suas potencialidades;
- alguma centralização do capital no Estado em determinados setores;
- o poder de regulação pelo Estado como forma de assegurar a igualdade e a justiça.
Comunismo
Doutrina social ou ideologia, que defende:
- a construção de um regime político e econômico que possibilite o estabelecimento da igualdade e justiça social entre os homens;
- que todos têm o mesmo direito a tudo, mediante a abolição da propriedade privada;
- o fim da sociedade burguesa, a luta da classe proletária contra a burguesia, o desaparecimento das classes e a sua substituição por uma sociedade socialista ou comunista;
- envolvimento de toda a sociedade, ao nível de todas as comunidades, no processo de transformação controlado e imposto pelo Estado/Governo;
- uma mudança brusca da sociedade e um afastamento do capitalismo;
- apropriação pelo Estado das formas produtivas, como as indústrias, fazendas entre outros, que passam a pertencer à sociedade e são controladas pelo Estado, para evitar a concentração da riqueza nas mãos de uma minoria;
- o controlo dos setores econômicos pelo Estado, determinando os preços, os estoques, salários, regulando o mercado como um todo – Economia planificada.
O cumprimento do dever/direito da cidadania passa obrigatoriamente pela formação, pela busca do conhecimento e da independência que justificarão em parte nossas decisões.
Face à proximidade das eleições legislativas 2015 descrevo uma classificação possível, a que resultou da minha pesquisa e estudo, dos diferentes tipos de regimes políticos, das formas de governo e dos governos, embora consciente de que não existe unanimidade terminológica entre os estudiosos das ciências políticas.
REGIMES POLÍTICOS: CLASSIFICAÇÃO
- Critério: detenção/atribuição do poder
DEMOCRACIA - Regime caraterizado pela intervenção do povo, direta (participação em assembleias) ou indireta (eleição de representantes) na governação.
REPÚBLICA - Regime caraterizado pela eleição pelo povo de seus representantes para o Parlamento e pela governação em obediência e uma Constituição aprovada pelo Parlamento. É também chamada de Democracia Representativa ou Parlamentar.
MONARQUIA ABSOLUTA - Regime caracterizado pela sucessão entre elementos de uma família ou grupo social. O povo não intervém; a vontade do rei faz lei.
ABSOLUTISMO - Regime em que os poderes são exercidos por uma só pessoa.
DITADURA - Regime caracterizado pela imposição, tornada lei, da vontade de uma pessoa ou de um grupo.
REGIMES POLÍTICOS: CLASSIFICAÇÃO
- Critério: distribuição dos poderes (legislativo, executivo e judicial)
FORMAS DE GOVERNO autárquico democrático: CLASSIFICAÇÃO
- Critério: quanto à forma de uso do poder conferido aos eleitos
DEMOCRACIA - Governação que respeita os direitos do povo, a Constituição e leis.
CACIQUISMO - Governação baseada nas relações de dependência que se criam ao redor do poder das pessoas poderosas.
AUTORITARISMO - Governação caracterizada pela exigência da obediência absoluta e cega à autoridade.
TOTALITARISMO - Governação exercida por uma só pessoa, fação ou grupo soocial, que não reconhece limites à sua autoridade e se esforça para regulamentar todos os aspectos da vida pública e privada.
GOVERNOS: CLASSIFICAÇÃO
Ter Liberdade; Ser Livre
Nos tempos que correm, verifico que muitas pessoas julgam e defendem VIVER EM LIBERDADE só porque lhes é concedido uma área de circulação e de intervenção, embora muitas vezes condicionada, ou porque apenas têm liberdade de expressão ou porque apenas têm liberdade de decisão.
Muitas pessoas, à semelhança dos animais selvagens, têm a liberdade de circular e de intervir, sem grandes restrições, mas têm o poder de decisão bastante condicionado ao fazerem suas escolhas de modo reativo face a desejos corporais e mentais, a “fantasmas” e medos criados em suas mentes - têm liberdade, mas não são livres. Outros, à semelhança dos animais domésticos criados em “cativeiro”, têm o espaço de circulação e de intervenção mais limitado e também não detêm o poder da decisão - não têm liberdade nem são livres. Um terceiro grupo de pessoas, têm a liberdade para decidir mas não lhes é facultada circulação, ação ou expressão - são livres mas não têm liberdade.
Em qualquer das três situações não se pode dizer que tais pessoas vivam em liberdade pois VIVER EM LIBERDADE implica SER LIVRE e TER LIBERDADE.
A LIBERDADE tem dupla natureza: uma endógena, com origem na mente de cada pessoa, e uma exógena, que é atribuída a que um pelos seus semelhantes.
O SER LIVRE resulta de um processo endógeno ao ser humano que se traduz na escolha por cada indivíduo de soluções de defesa do bem comum e de direitos consensualmente defendidos, na tomada de decisões baseadas nos valores e princípios culturalmente assimilados e transmitidos pela nossa sociedade como imprescindíveis ao normal funcionamento da sociedade e à defesa dos direitos humanos, livre da subordinação a desejos, ou a medos resultantes da sobrevalorização de memórias negativas ou da imaginação de consequências não desejadas, em anulação da sua vontade e em oposição ao que se acha certo, à independência da razão sobre as emoções. Todo aquele que decide condicionado por interesses individuais, desejos ou medos não é livre, pois apenas está a reagir a memórias, ao desconforto que tal medo gera no organismo ou ao conforto associado à satisfação de interesses egoístas, a “avisos de alarme” oriundos do seu subconsciente, não detendo a capacidade de controlo da vontade mental sobre os desejos e impulsos apesar de discernir o certo do errado, o bem do mal. Reage instintivamente ou mentalmente de forma primitiva, mas não racionalmente, em desobediência à sua vontade, estabelecendo associações do tipo causa/efeito (desejos ou recordações más/prejuízo), a não ser que o egocentrismo e o egoísmo, suas crenças ou outra má-vontade, estejam dominando e corrompendo sua alma.
Ao decidir em desconformidade com a sua vontade, não não está a ser livre, e está a contribuir para que o certo deixe de o ser e de existir e o errado se estabeleça como moda e prevaleça como norma arbitrária, e a prejudicar os seus semelhantes, não pelo silêncio, mas por preguiça mental, cobardia e ausência do uso da razão. Usar a razão, a consciência moral, o entendimento, independentemente do que o corpo deseja, na tomada de decisões é ser-se livre, ação que por norma a sociedade desencoraja de variadíssimas maneiras e penaliza educando as pessoas na subserviência a regras impostas e aos interesses e desejos de terceiros, não vontades, incentivando portanto as pessoas ao não-raciocínio.
Apesar de ter origem na mente de cada pessoa, o SER LIVRE deve ser direcionado preferencialmente para a defesa do próximo, do coletivo e do bem-comum e por inerência do indivíduo. As decisões de cada um determinam e condicionam a liberdade do próximo, individual e coletivamente. Ninguém, nenhum grupo, mesmo quando em maioria, tem o direito de determinar e condicionar a liberdade das restantes pessoas quando suas decisões violam os direitos humanos ou se opõem à sua vontade, à razão, com a justificação do medo ou do interesse individual egoísta. Nessa situação, o menos aceitável seria a neutralidade de posicionamente, a ausência de decisão, ao invés da decisão orientada pela moral do rebanho.
Não é livre quem não assume as suas responsabilidades individuais e se deixar guiar pelo rebanho.
SER LIVRE significa decidir com ética, segundo o seu livre arbítrio, em obediência à sua própria boa vontade, à sua razão, ao seu entendimento - liberdade de uso da razão, por dever como imperativo categórico (o que deve fazer) e não segundo o dever, e de forma desinteressada, capacidade mental essa que, sendo comum a todos as pessoas e inexistente nos animais, determina e explica, à luz do pensamento moderno, o conceito de igual competência do uso da razão, de igualdade, valor esse estabelecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 1948.
NÃO SER LIVRE significa agir em conformidade com seus desejos, muitas vezes com imoralidade, sem ação da razão, em oposição à boa vontade e como ser menor, em negação do humanismo, deixando que o instinto comande a vida de cada um com prejuízo para os seus semelhantes, deixando que o desejo instintivo justifique a razão da decisão. O instinto não é libertador; antes pelo contrário, com frequência nos debilita, oprime, escraviza e limita a liberdade, mantendo-nos no interior da caverna, iludidos pelos instintos e subjugados pelos desejos materiais, em oposição à vontade, à razão.
Caminhar não é o caminho. Nascemos livres e com a liberdade para decidir. Durante a fase da dependência, que normalmente se estende até ao fim da adolescência, aculturamos valores e desenvolvemos uma estrutura ideológica em sociedade, uma consciência, que nos ajuda a ser livres. Não somos livres quando diligenciamos nos outros a liberdade de decisão, quando acreditamos e fazemos acreditar na falta de liberdade para definir a própria vida, quando afirmarmos não termos tido possibilidade de escolher, quando transferimos para os outros a responsabilidade dos nossos atos.
Mas, mesmo que pensemos que somos só corpo, materialistas, e assumirmos que apenas decidimos reativamente, instintivamente, em obediência aos condicionalismos impostos pela natureza e pelos outros, que não há portanto liberdade, e que os sentimentos de angústia, de tristeza ou de algeria perante os acontecimentos determinariam uma resposta reativa do corpo na busca da felicidade, do prazer, do bem-estar - da equilibração do ser, poder-se-ía falar mesmo assim de uma liberdade inata, que nos impulsa na tomada também de ações, visando o equilíbrio energético, justificativas não só da reação congruente com as normas impostas mas também da reação de rejeição, de contestação. Tal liberdade inata para decidir, é inerente à própria existência da capacidade de imaginar, de prever nossos sentimentos, de desenvolver uma prévia consciência da causalidade dos nossos sentimentos e de prever nosso estado energético, e determina a capacidade de poder imaginar e escolher os melhores contextos e de tomar as melhores decisões visando a equilibração do ser.
Quando justificamos com o argumento de que "nada podemos fazer, que é inevitável" estamos a assumir que a inércia é natural, inata à espécie humana, e a permitir formas de violência, violência institucionalizada e violência simbólica, resultante do medo imposto, em desrespeito pela dignidade humana, com agravamento das desigualdades entre os homens. Além disso, a quebra da solidariedade, do tipo orgância, em oposição a uma consciência coletiva no quadro dos direitos humanos ocidentais, traduz o não reconhecimento do próximo como indivíduo e representa uma manifestação de desrespeito, uma quebra do compromisso com os outros. Apesar da Verdade ter apóstolos, ainda tem muitos "Tomés" e demasiados "Judas".
Se ao ser humano é possível, em grau variável, o controlo pela mente, pela razão, do desejo, da alegria, da tristeza, então seria também de esperar o controlo do medo, enquanto emoção e sentimento manifestado primeiramente como ansiedade. Basta querer, ter vontade para não alimentar o medo que, à semelhança das drogas, nos violenta e condiciona. Somos responsáveis pelas nossas paixões, pelos nossos desejos e pela nossa vontade, pois todos eles estão subordinados à razão, mãe da liberdade de ser, sensação que causa angústia associada ao ato de escolher e à responsabilização pelas suas consequências, individuais e coletivas. Deixar para os outros a decisão, com a justificação de que não sei, não estou a par - má fé, ou que não tenho jeito para isso - cobardia, ou decidir contra o que considera justo ou apoiar o que não defende, traduzem atos de negação do SER LIVRE.
Apesar do relativismo de todas as correntes filosóficas, por ausência da confirmação da verdacidade de cada teoria, constituindo cada uma meras probabilidades, hipóteses, a necessidade científica, e também filosófica, determina o caminhar na busca da verdade e do conhecimento, a busca de explicações e a tomada de escolhas, subordinada à razão, em conformidade com a consciência que desenvolvemos do ser, assumindo a liberdade a definição de pensar e fazer o que se deve, ao invés de desejar e fazer o que se pode.
O TER LIBERDADE, de natureza exógena, é concedido a cada pessoa, pelo próximo ou pela comunidade ou pela sociedade, e traduz-se nas chamadas liberdade de circulação, liberdade de ação e liberdade de expressão, subordinadas à liberdade de ser, ao SER LIVRE. Não tem liberdade, podendo ser livre, quem está proibido de circular ou de agir ou de se expressar.
Atuamente, face à normatização social e às dificuldades, especialmente de natureza financeira, sentidas por muitos portugueses, o medo de não ter ou o medo de perder tem oprimido a mente de muitos ao ponto perderem a voz (passaram a não ter opinião por conveniência) ou a decidirem o futuro do próximo com base nos seus medos. Nos tempos atuais assisto à tomada de decisões e ao assumir de comportamentos que traduzem uma diminuição da liberdade das pessoas ao ponto, por vezes, de anularem sua identidade, como se houvesse uma natureza humana propriedade de alguém, que não do próprio, como se de um objeto se tratasse, e não um condição humana com identidade desenvolvida em liberdade pelo uso da razão numa sociedade moderna que hipocritamente se assume como humanista.
São exemplos de situações na nossa sociedade de perda de liberdade:
Quando nos limitamos a obedecer ou quando aceitamos passivamente a subjugação estamos a tirar sentido à nossa existência enquanto seres livres, a assumir a nossa menoridade, e a reconhecer, comparativa e conscientemente, a natureza "divina" ou superior em direitos daqueles a quem servimos.
Se admitirmos que a essência do homem reside na busca do conhecimento e da verdade e que a mesma só se poderá atingir com plenitude vivendo em e incluido numa sociedade, a liberdade passa a ser um atributo e o seu uso, intencional e dirigido para o serviço ao próximo, uma condição ao progresso e ao desenvolvimento do ser humano. À semelhança da matéria, também o ser se forma do ser, pois ambos têm a mesma natureza, pelo uso da razão.
DAR SENTIDO À VIDA, SUA E À DOS OUTROS, É A ESSÊNCIA DA INDEPENDÊNCIA DA RAZÃO QUE NOS CONFERE A LIBERDADE NECESSÁRIA À BUSCA DA VERDADE.
Apesar do entendimento descrito defendido ao longo da história por várias correntes filosóficas, da independência e autonomia da razão sobre os desejos e emoções, ser, numa primeira análise, negado pelas recentes descobertas, deduções, trazidas atualmente pela física quântica, que indiciam que toda a decisão humana, mesmo a resultante do uso da razão, têm origem inconsciente, significando portanto que as nossas decisões inconscientes precedem a tomada consciente do raciocínio realizado e da decisão, também defendem que as mesmas decisões insconscientes são o resultado de toda um processamento e armazenamento anterior de informação percecionada durante as experiências de vida, podendo, portanto, concluir-se que, apesar de iludidos pela sensação de autonomia da razão consciente, o homem decide em função dos valores inculcados e do significado e valorização atribuída às experiências e memórias do passado (informação gravada em seu inconsciente), tendo, no entanto, a liberdade de poder escolher a educação que orientará a tomada de suas decisões. Nosso inconsciente informa nossa consciência das decisões tomadas de acordo com o nosso antecedente, apesar de também poder confrontar-nos com com outras possibilidades.
Ser Livre, à luz da física quântica, significa inculcar e hierarquizar/ponderar valores e atribuir significado às experiências de vida (efeito da nossa vivência), de modo a fornecer as informações significativas que o nosso "programa mental", de natureza quântica, usará na tomada de decisões.
Na perspetiva clássica, a decisão consciente precedia e determinava o comportamento, a educação (meio => consciente => inconsciente). Atualmente, a nova visão contemporânea postula que:
1 - através dos nossos sentidos, armazenamos informação em nosso inconsciente, que vão constituir a base da nossa educação - (meio => inconsciente);
2 - perante a chegada de informação do meio ao inconsciente, via órgãos dos sentidos, as decisões possíveis são geradas no inconsciente, de acordo com a nossa educação, e apresentadas posterior ao consciente. A educação precede a tomada de uma decisão consciente; é o inconsciente que apresenta a decisão a tomar - (meio => inconsciente => consciente);
3 - a não reflexão crítica consciente da decisão apresentada por norma determina o assumir dessa decisão, mantendo a educação pré-existente - (meio => inconsciente => consciente);
4 - uma decisão tomada após uma reflexão crítica da decisão apresentada, que envolve a análise de outras possibilidades de decisão, por norma determina uma evolução na educação de uma pessoa. Através da reflexão (pensamento consciente) podemos induzir mudanças na perceção pelo inconsciente, na educação (meio => inconsciente => consciente => inconsciente).
Temos consciência do que somos e da nossa capacidade de corrigir processos educativos e formativos. Daí a importância da boa companhia e da boa integração social. Depois de formatados, a inversão de valores torna-se extremamente dificil e só é quando possível pela ajuda em ambiente favorável. Daí a importância da educação como processo primeiro, como meio, na formação do homem social e na dignificação humana via comportamentos e decisões.
SOMOS HOJE O QUE FIZEMOS, O QUE NOS HABITUAMOS A SER, apesar de conscientemente livres para mudar.
A consciência que tenho do uso da liberdade na sociedade em que vivemos, inserida numa sociedade capitalista de tendência neoliberal, que sobrepõe o interesse financeiro ao empresarial, ao coletivo e mesmo ao individual, desumanizando as sociedade, faz-me acreditar da necessidade da educação para a liberdade que reoriente a ação humana no sentido do próximo e do coletivo, ao invés do individual, e torne cada membro da sociedade mais preocupado com os outros do que consigo próprio, como processo conducente a uma nova ordem social. Só assim cada pessoa conseguirá decidir livre de condicionamentos gerados pelo medo ou pelo egoísmo na defesa do Ego e agir de boa vontade por dever para consigo e para com a sociedade.
Se cada um de nós se preocupar primeiramente consigo, abrimos as “portas” do nosso ser aos "demónios" que nos dominam e comandam, determinando a competição, o desentendimento, a desconfiança, o ódio, a soberba e a ganância em nossas almas e o agravamento das diferenças que observamos e vivenciamos: maus e bons, inimigos e amigos, pobreza e riqueza, corrupção e honestidade, humildade e soberba.
Se cada um de nós se concentrar primeiramente em melhorar a vida dos seus semelhantes a consequência lógica e óbvia é que também cada um deles contribuirá para melhorar a nossa, pois esse é também a preocupação dos outros, e todos viveremos melhor, mais felizes e mais realizados.
Creio que a evolução negativa a que assistimos, com todos os problemas que vivenciamos na nossa democracia, na nossa comunidade e nas nossas famílias são, em grande parte, consequência da permitida PERDA DE LIBERDADE por parte de cada indivíduo resultantes da ganância, do desejo instintivo insasiável pelo prazer, do individualismo e da competição empobrecida de ética que fomentamos, visando preferencialmente o sucesso individual, como projeto de vida, e, para alguns, também geradora de felicidade. Pura ILUSÃO.
Como, infelizmente o adágio popular "Burro velho não aprende" se tem revelado verdadeiro, julgo que é tempo de repensar os modelos educativos, reorientar a conduta humana e repensar sua dinâmica social, de momento demasiado centralizada nos interesses de meia dúzia, promovondo nas escolas a educação dos mais novos, ainda não subjugados pela ambição pelo dinheiro e pelo poder sobre os outros, educando-os para o aprender a SER LIVRE, a refletir, a analisar os diferentes entendimentos de que tomamos consciência, a direcionar a ambição de cada pessoa no sentido do bem coletivo, do sujeito coletivo.
Como os modelos educativos do passado e do presente constituem um obstáculo à manifestação da liberdade pelo homem dado terem como preocupação primeira a instrução, a competição e a formatação do aluno como processo de integração visando a aceitação da organização, da dinâmica e do controlo social, necessária à satisfação de interesses individuais, principalmente de natureza financeira, mas também de outra, creio que é chegado o tempo repensar o modelo educativo pedagógico promovendo a EDUCAÇÃO PARA A LIBERDADE como condição determinante.
Promover a competição e o conflito social para manter a paz ou a liderança, quando não justificada pela defesa de valores superiores e por consenso universal, constitui uma estratégia de subordinação e controlo das mentes humanas que imprime uma educação mas não a gera.
Viver em sociedade não é sinónimo de viver para e em conflito social.
Alimentar o conflito social só traz desconfiança, inquietação, medo, divisão, egoísmo, instabilidade e desigualdade sociais.
Educar-se para o conflito social, como solução para a sua realização pessoal, pressupõe a negação da igualdade de género.
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.